sábado, 31 de maio de 2008

O caso do vidro que veio enganado...

Há mais ou menos quinze dias assaltaram-me o carro. Partiram o vidro, mexeram nas minhas coisas, roubaram um GPS e, na pressa causada pelo troar do alarme, levaram metade de um rádio, que sinceramente espero que funcione melhor do que a metade com que eu inutilmente fiquei.
Enfim, já muitos passámos por isso. Uma chatice: telefonar ao ACP para guardar o carro durante a noite; fazer queixa à PSP porque sem isso não podemos accionar o seguro do carro; fazer uma peritagem num local indicado pela seguradora; dirigirmo-nos a uma garagem onde, primeiro, nos façam um orçamento e, depois, nos arranjem o carro… e tudo isto, claro está, no meio dos normais afazeres do dia a dia.
Já quase tudo passado, faltava-me apenas substituir o vidro do carro, o qual foi encomendado há já mais de uma semana (tenho andado com um plástico colado à porta do carro, que simpaticamente puseram na oficina, o que me obriga a estacionar, à noite, em cima dos passeios, quase encostado às paredes das casas). Telefonaram-me finalmente com a boa notícia de que o vidro já cá estava e ontem, sexta-feira, lá deixei o carro logo de manhã na oficina para o poder ir buscar, já pronto, à hora de almoço.
A meio da manhã, no entanto, recebi uma mensagem no meu telemóvel que textualmente dizia: «Bom dia fala da ....... venho por este meio informa-lo que o vidro pra a sua viatura não veio correcto, sendo assim fico aguardar um contanto. Obrigado». Fiquei a saber, portanto, para além das evidentes qualidades ortográficas de alguém daquela oficina, que o vidro tinha vindo enganado.
Chegado à oficina à hora do almoço, como combinado, informei amavelmente que os vidros não se enganam, pedindo que me explicassem o que é que se tinha passado. O meu objectivo não era retórico, mas, em vista de uma óbvia dificuldade, descobrir um responsável para, a partir daí, poder resolver o problema. Mas, manifestamente, eu não estava a perceber, porque várias vezes me explicaram que o vidro tinha mesmo vindo enganado.
Já no fim da conversa, consegui a custo arrancar o nome de um longínquo Sr. José Ângelo, que, ao que parece, tinha trocado os vidros, sendo que estava no Porto e era da concessionária, factos que, a mim nada adiantando, cumpriam, no entanto, a função de manter a responsabilidade distante e alheia.
Daqui para a frente o diálogo tornou-se impossível, porque à pergunta: «Então quando é que o vidro cá vai estar?», imediatamente se seguia: «O mais depressa possível». Claro que eu então perguntava: «Mas concretamente quando é que isso vai ser?», ao que amavelmente respondiam: «Ai isso não lhe posso dizer». E quando eu indagava: «Porquê?», as respostas variavam entre: «Depende do Sr. José Ângelo», «depende da concessionária», ou «depende do Sr. José Ângelo, que é da concessionária».
Vim-me embora – à espera de uma nova chamada, que não sei quando vai ser. Mas, entre o vidro e o Sr. José Ângelo, dei por mim uma vez mais a pensar que é este, talvez, o principal problema do nosso povo: a inexistência de um verdadeiro sujeito, criador, activo e responsável. Porque quando alguma coisa acontece no nosso país, em todos os seus diferentes e variados níveis, sempre aparece alguém que, com simpatia e boa vontade, nos explica que a responsabilidade é distante e é alheia.
Ora, nunca é demais lembrar a história de Adão e Eva, que, depois de desobedecerem a Deus, não quiseram reconhecer, perante Ele, a sua responsabilidade: Adão apontou para Eva e Eva para a serpente, a qual não apontou para ninguém, pois como se sabe, não tem dedos. Pelo castigo, porém, Deus não queria fazer-lhes mal, mas repô-los no bem (castigare, em latim, vem de castus + agere, que literalmente significa agir castamente). Para isso eles tinham que assumir a responsabilidade do que tinham feito. Não o fazendo, foram expulsos do paraíso, para que o fizessem, aí começando a história da salvação. E é essa a lição que queria deixar para Portugal: sem reconhecermos as nossas falhas não assumiremos quem somos e continuaremos perdidos, sozinhos e com medo, longe de nós e de Deus. No instante da escolha, pode parecer mais fácil, como bem sabem as crianças, mas a longo prazo não é, como julgo que sabemos todos nós.

1 comentários:

Manuel S. Fonseca disse...

Gonçalo, tem toda a razão. Mas não pense que pode proteger-se com a excepcionalidade da coisa. Nós, portugueses, somos, de facto, assim. Mas à medida que escavamos um bocadinho, encontramos em Espanha, França, até nos "glorious USA" situações similares. E com isto não estou a dizer que "é tudo igual". Só estou a dizer que "nós não nos vamos safar" apesar de nos "little details", como o que agora menciona, eles baterem a bola tão baixo como nós. That's the difference. Mas as razões são outras...