quinta-feira, 15 de maio de 2008

A Igualdade e Liberdade em Coimbra - declaração a uma faculdade


Esta é uma declaração de amor a uma Faculdade, à minha: a Faculdade de Direito de Coimbra. E só o texto oportuno do Martim Avillez Figueiredo teve o condão de me a suscitar. É o meu texto sobre a Igualdade e a Liberdade, sem o brilho académico do Martim ou da Sofia Galvão.

A Faculdade de Direito congregava os espíritos mais díspares que se possa imaginar:tínhamos Professores tão conotados com o antigo regime que no 25 de Abril haviam sido saneados, bem como outros que, sendo de esquerda, haviam sido proibidos de dar aulas nesse regime. Ou seja, tínhamos Professores saneados à esquerda e à direita. Em 1990 já haviam sido recuperados, retomando as suas cátedras. Tínhamos por isso um ensino dialéctico, dual, esquisofrénico, dicotómico, antagónico. Linha dura PCP em Economia Política com Avelãs Nunes, estudando, os sistemas económicos na perspectiva da gloriosa transição para o socialismo, Direito do Trabalho com Jorge Leite, Direito Constitucional com Gomes Canotilho já mais próximo do PS, passando pelos ensinamentos preciosos deixados por Mota Pinto em Direito Civil, até Direito das Coisas, ou das Obrigações dados por Henrique Mesquita e Ameida Costa - ou de como o direito existe para proteger a propriedade e os credores.

Tínhamos assim que nas aulas dos Professores de direita, criticar ferozmente os desvios de esquerda, e nas aulas dos mestres de esquerda defender os trabalhadores, as cooperativas e as máximas de esquerda na Constituição.

O mais extraordinário é que o próprio ambiente da faculdade era assim: no mínimo eclético. Salvo algumas excepções, não tínhamos carro ( o que justificava a nossa elegância). Vestíamos mal e ninguém tinha um ar sofisticado. Devia ser por isso que o traje académico tinha muita saída. Havia muitos colegas dos PALOP que passavam mal naqueles invernos. Tínhamos muitos filhos de operários e oriundos dos meios rurais, ou do pequeno comércio. Muitos moravam em residências universitárias. Havia também "filhos família", que vinham essencialmente da burguesia do norte e das famílias de Coimbra. Ninguém sobresssaía muito. Uns porque eram pobres, os outros, porque não o sendo, tinham pais que cultivavam a modéstia e a discrição.

É claro que esta distinção também determinava o futuro das profissões jurídicas: geralmente para os primeiros o notariado e as magistraturas, para os segundos a advocacia e maior protagonismo público.

Todavia, nessa altura ainda não sabíamos isso e travávamos discussões de dimensão biblíca sobre o estado do mundo no bar, enquanto o Sr. Beltrão impaciente guardava os nossos livros na sala de leitura.

Havia no entanto, um factor de absoluta homogeneidade em todo aquele ambiente: a cultura da exigência. Só ia às aulas quem queria, não existia qualquer tipo de obrigatoriedade. Fomentava-se a dificuldade a todos os níveis. Tudo era espartano e feito pelo mínimo. Não havia salas, não havia materias de apoio, havia um frio de rachar os ossos que fazia com que soubesse bem o quentinho daquelas centenas de almas tão juntinhas. Ninguém cuidava de nós, porque se partia do pressuposto saudável que aos 18 anos sabemos cuidar de nós. Eu não devia saber porque vendi apontamentos, sebentas e livros só para ter mais uns trocados aplicados em coisas muito pouco nobres que mais tarde me fizeram falta.

Dêem-me um aluno de Direito de Coimbra e eu mostro-vos alguém capaz de desmontar argumentos, um advogado do diabo tal qual a Santa Sé os inventou.

Quanto a mim, que aos seis anos, no dia em que entrava na escola primária, tive um pai que me chamou e disse "Vai, cuida de ti, nunca me faças queixas, porque jamais irei à escola defender-te, resolve lá os teus problemas" senti-me em casa naquele lugar.

Parece-me que acabei a escrever, novamente, sobre direita e esquerda. Quem diria, só queria escrever sobre Igualdade e Liberdade...

3 comentários:

LR disse...

Ahahah, foi giro, muito giro ler isto:)
Recordar o Sr. Beltrão; -recordar os nossos campeonatos íntimos de "Brio VS Sofrimento"; -recordar o frio das paredes e a frialdade dos profs; -o individualismo extremo daquela cultura discente, 'malgré nous'; -as verdadeiras heroicidades cometidas (como por exemplo, responder à chamada para a oral às 9 AM, depois de uma noite em branco. Voltar às 3 PM. E fazer finalmente a prova às 11 da noite... )

Para quê médias altas de entrada, ou numerus clausus, num sistema dotado de uma impiedosa selecção natural?!

Eu sou de uma geração pós abrilista que contudo, ainda conheceu o "barco" mais desequilibrado... embora sempre potencialmente 'faltista'.
Orlando de Carvalho em Reais, por exemplo... ou como aprender enviesadamente direito das coisas...
Porque a contrabalançar, quem mesmo? Só as AULAS de Mota Pinto, Cardoso da Costa, Vieira de Andrade, Francisco Pereira Coelho, Costa Andrade. E só as aulas (digamos...) de Rogério Soares.

Costumo dizer, sem demasiado optimismo, que "aquilo" era uma espécie de tropa pós descolonização, uma autêntica escola de vida! E que depois da FDUC, ninguém, rigorosamente ninguém, conseguiria baixar-nos alguma vez o ego (depois de ali tanto ter sido espezinhado, mas sobrevivido :)

Foi giro lembrar, não a escola de liberdade, mas a de igualdade (isso sim).
Lembrar, enfim, a excessiva dignidade daquilo tudo :)

Mais do que tudo o resto, a FDUC está resumida exemplarmente na sua frase «Fomentava-se a dificuldade a todos os níveis»

Uma grande verdade:)

Sofia Rocha disse...

Teresa, obrigado por escrever.
Continuo a achar que foi dos espaços mais livres que conheci até hoje. Que outro lugar que não um espaço aberto, livre e plural, poderia ao mesmo tempo dar os sistemas económicos pelo Prof. Avelãs Nunes, esquerda, esquerda, e as teorias de Almeida Costa por exemplo? Eu nunca ouvi um Professor a fazer um comentário sobre o pensamento contrário de outro colega. Ou seja, a antítese era aceite com naturalidade!
Acima de tudo,falo por mim, fiquei com a ideia de que me era permitido pensar tudo, problematizar tudo e, no final, fazer a minha própria escolha.
A começar pela liberdade de escolha de ir ou não às aulas.
Não me lembro de nessa altura passar pela cabeça de alguém que o aluno A, preto, branco, pobre ou rico, tinha uma melhor nota por qualquer desvio. Pelo contrário, conhecíamos e admirávamos os nossos colegas que sendo reconhecidamente melhores eram por isso distinguidos.
Digo e repito, aos 18 anos ajudou a formar-me, deu-me um instrumento de trabalho, num ambiente de grande exigência e rigor. Cumpriu bem o seu papel.

Uva disse...

"Eu nunca ouvi um Professor a fazer um comentário sobre o pensamento contrário de outro colega"

Eu sou da geração bolonhista, o que raio queira isso significar....

Assita às aulas do Vieira Cura são fartas em reparos ao regente da cadeira, Santos Justo.

O processo de Bolonha atacou tudo aquilo que descreveu como liberdade, mas certo será. Esta Faculdade tem alguma coisa.