domingo, 18 de maio de 2008

Direita e esquerda – ensaio de reabilitação (III)

Nos estados contemporâneos, a grande questão política formula-se na resposta ao desígnio da justiça. E, mais especificamente, da justiça social. Isto é, da capacidade de uma sociedade organizada prover às necessidades dos seus membros, de modo a assegurar a todos condições de dignidade e de realização.

A esquerda responde à questão, historicamente, pela via igualitária. O seu impulso cultural é o sentimento de insatisfação e de sofrimento perante as iniquidades das sociedades contemporâneas. A sua proposta política é, pois, a remoção dos obstáculos que tornam as pessoas menos iguais ou mesmo desiguais.

Saber se algum dia a utopia igualitária poderá concretizar-se em obra social realizada, é uma pergunta que parece desinteressar a actualidade. As cidades ideais dos filósofos estavam destinadas a ser apenas isso: ideais. E, efectivamente, a primeira vez que a grande utopia igualitária entrou na História converteu-se no seu oposto. Tudo isto parece ainda demasiadamente presente...

É certo que há problemas no mundo contemporâneo que os movimentos tradicionais de esquerda nunca tinham colocado a si próprios, e que, paralelamente, desapareceram alguns dos pressupostos em que esses movimentos tinham baseado não só o seu projecto de transformação da sociedade, mas também a sua força.

Nestas circunstâncias, portanto, a esquerda de hoje não é a esquerda de ontem. Seja como for, a verdade é que reage à desorientação com um fechar da guarda em torno do seu grande axioma: ainda e sempre, a igualdade.

Ora, talvez seja este, justamente, o equívoco da esquerda. O equívoco em que a esquerda persiste. Para fundar a justiça, a esquerda continua a perseguir a igualdade.

Fazendo-o, prossegue um desígnio de nivelamento. Que é, necessariamente, feito por baixo, obedecendo aos apelos dos que reivindicam a igualdade absoluta. A exigência da igualdade universal é sempre uma especulação na baixa (Max SCHELER). Enquanto pura ideia racional, a igualdade nunca pôde mover vontade, desejo ou emoção. E, enquanto exigência, oculta o ressentimento e a dor perante o espectáculo de valores eminentes. A igualdade moral dos homens é um falso pressuposto, negado pela cultura helénica, como depois o foi pelo cristianismo. Mas, de alguma forma, é retomada pela esquerda moderna e, a partir dela, acaba por fundar os vários relativismos contemporâneos. Noutro plano, só aparentemente contraditório, o apego às noções objectivas e universais nega a ideia de revelação e, assim, o facto, incontestável, de que nem todos lhe acedem e que, no próprio universo dos que o fazem, nem todos acedem de modo igual. Nega-se, pois, toda a teoria do conhecimento e de uma cultura verdadeiramente humana.

A moral igualitária – e, portanto, a esquerda, enquanto a preconizar - nega a hierarquia, o pensamento, a transcendência... (João Luís FERREIRA).

Talvez por tudo, tenha Karl Popper confessado um dia: se pudesse haver um socialismo combinado com a liberdade, ainda seria socialista (Busca Inacabada, Esfera do Caos, 2008, p. 57).

Pretende certa esquerda, que não há nenhum contraste entre o ideal da igualdade e o reconhecimento da diversidade. A diferença entre direita e esquerda residiria, afinal, na diferença de critério que permite julgar quem são os iguais e quem são os diferentes.

Mas o ponto é que, em rigor, só a esquerda persegue a igualdade. A direita, funda-se na liberdade, para alcançar a justiça – o que é, substancialmente, diferente.

A liberdade é a confiança em si mesmo. A liberdade funda a percepção do êxito como recompensa.

A fonte reside na inteligência que concebe, na imaginação que faz empreender, na obstinação que leva a perseverar. Afinal, a liberdade radica numa imensa aposta nas possibilidades da própria liberdade.

Quanto à sociedade liberal, é claro que as hierarquias que nela introduzem as desigualdades das situações económicas fazem do exercício da liberdade o monopólio dos privilegiados. Produto da liberdade, o capitalismo gera o proletariado. No entanto, não é nesta perspectiva pessimista que o liberalismo nascente considera a liberdade. O liberalismo dá mais importância ao seu fundamento do que às suas consequências. E a liberdade pertence a todos os homens, ainda que nem todos estejam igualmente habilitados a usá-la (Georges BURDEAU). Mas esta desigualdade não é uma predestinação – a experiência e a reflexão podem corrigi-la.

As espantosas semelhanças quanto ao modo de compreender a liberdade entre o Bill of Rights, a Petition of Rights, as Declarações da Virgínia ou do Massachusets e a Declaração de 1789 demonstram que a liberdade não foi criada – ou outorgada – mas que existe. Indelevelmente ligada à natureza humana, nada deve às autoridades sociais. A liberdade é prévia à instituição do poder e, numa decisiva implicação, limita o poder.

A profissão de fé na liberdade obriga a tomar consciência de que a essência da democracia está nela e nunca no exercício do poder. Não existe um exercício democrático do poder ‘a se’. A democracia justifica-se, obriga-se e limita-se na liberdade. E implica uma permanente suspeita sobre o poder, em nome dessa liberdade legitimadora.

Na doutrina liberal tradicional, o Estado exige pouco do indivíduo, mas pelo menos espera dele que subordine a sua atitude à consideração dum bem colectivo em cuja definição participa enquanto ser racional e responsável. Esse bem é a paz obtida por um escrupuloso respeito da lei. Tradicionalmente, qualquer perturbação desta ordem é considerada como um germe de anarquia.

Este raciocínio foi e é usado pelos governantes para exigir dos governados o estrito cumprimento dos seus deveres. Mas continuará válida uma tal identificação entre civismo e abnegação?

Se a regra deixa de exprimir um imperativo da consciência iluminada pela razão, a política deve aceitar ser discutida A eclosão de determinados movimentos sociais, designadamente no campo do ambiente e da ecologia ou dos direitos das minorias, são um sinal do despertar da consciência cidadã que já não aceita as regras impostas sem considerar as suas exigências. Nesta perspectiva, é a contestação que se torna um dever, já que, mostrando que a regra é vulnerável, torna imperativa a exigência da sua modificação.

A nova dialéctica entre civismo e contestação faz perder ao primeiro o seu aspecto de aceitação e à segunda o seu travo de rebelião (Georges BURDEAU). Portanto, não só não se excluem mutuamente como é muito plausível que este novo civismo contestatário possa devolver ao liberalismo a sua pureza inicial.

Na minha opinião, é a esta outra luz que deve revisitar-se, hoje, a mais segura e inspiradora tríade política de sempre: i.) liberdade individual; ii.) santidade da justiça; iii.) limitação do poder do Estado.

Mas estes não são pressupostos de esquerda.

Continua…

1 comentários:

Paulo C. Rangel disse...

Sofia: a reflexão aqui deixada lembra-me uma divisa de um saudoso mestre, João Baptista Machado (um dos maiores juristas do século XX português). "Para mim primeiro está a liberdade, o poder é que precisa de se justificar".