domingo, 4 de maio de 2008

Direita e esquerda – ensaio de reabilitação (II)


Na fronteira entre «direita» e «esquerda», há dois termos que fazem charneira. Dois termos que não são exclusivo de um ou outro lado da dicotomia, mas cujo peso relativo varia, inconfundivelmente, marcando uma diferença identitária. Penso, sem hesitação, na liberdade e na igualdade.

Não é raro ver-se a ideia de igualdade – como ideal supremo de uma comunidade organizada, justa e feliz – associada ao ideal da liberdade, também considerado fim colectivo último.

No entanto, o aprofundamento da reflexão enfrenta, aqui, questões nucleares. Que liberdade? De querer?, de agir? Para todos?, mesmo todos? Que igualdade?, entre quem?, com que sentido? Só a resposta a estas interrogações essenciais permite perceber que há situações de efectiva (e natural) complementaridade de valores na idealização da boa sociedade, outras em que há uma franca incompatibilidade e outras ainda em que é possível (e recomendável) fundar o equilíbrio em princípios de concordância prática.

Ninguém desconhece que, muitas vezes, o sistema social promove a igualdade, formal e material, à custa do valor da liberdade. Como também ninguém ignora que a exaltação das liberdades, designadamente da liberdade económica, tende a desinteressar-se das desigualdades que a exacerbação da liberdade necessariamente induz.

No confronto entre os dois valores – liberdade e igualdade –, a vertigem igualitária poderia impor a obrigatoriedade do ensino público, a generalização do ensino de um ofício a par do estudo intelectual, a uniformização do vestuário. Problema, aliás, complexo, já que a restrição da liberdade de escolha também nunca é neutra – com efeito, a liberdade de escolha na esfera privada é intrinsecamente desigual, já que a liberdade privada dos ricos é imensamente mais ampla do que a dos pobres.

Neste contexto axiologicamente difícil, a doutrina liberal preconiza uma forma de igualitarismo mínimo, segundo a qual todas as pessoas têm direito a igual liberdade, salvo excepções que têm de ser justificadas, o que implica que cada um limite a sua liberdade para a tornar compatível com a liberdade de todos os outros.

É claro que a doutrina liberal não resolve, no plano da acção política, os problemas colocados pelo postulado da liberdade igual. Afirma-o em abstracto, mas o que existe são liberdades concretas. E sustentar que se usufrui, em abstracto, de todas as liberdades individuais que os outros têm é bem diferente de dizer que se usufrui de cada liberdade de uma forma igual a todos os outros. Ora, a doutrina liberal afirma a primeira, como princípio, mas a prática liberal não pode garantir a segunda, a não ser intervindo com medidas igualitárias limitativas, o que significa pôr em crise o princípio geral.

Nesta reflexão, importa ainda sublinhar um outro aspecto decisivo. É que os conceitos de liberdade e igualdade não são simétricos. A liberdade é um atributo da pessoa, na sua qualidade de indivíduo. A igualdade exprime – e, portanto, exige – uma relação entre dois ou mais seres. A frase de Orwell jamais teria resultado se reportada à liberdade: que todos são livres, mas uns são mais livres que outros, é uma evidência. É na igualdade que a frase, sendo contraditória, ganha sentido. A liberdade é um bem individual, a igualdade é um bem social.

Daí que a igualdade na liberdade não exclua a aspiração por outras formas de igualdade, como a igualdade de oportunidades ou, mais radicalmente, a igualdade de rendimentos. Mas tal aspiração revela, tipicamente, algum grau de conflito com o próprio ponto de partida: a igualdade na liberdade.

Ora, na minha opinião, é sobretudo o posicionamento relativamente à ideia de igualdade que sustenta a distinção entre «direita» e «esquerda». Como é esse posicionamento, aliás, que explica uma imensa diversidade nos modos de formular e entender a própria ideia de liberdade.

Continuarei com este mote...

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