O Assassino Desinteressado
A quem é que Tennessee Williams terá chamado uma “sweetly vicious old lady”? Talvez vos diga, talvez volte adiante a esta citação pérfida. Mas para começo de conversa, quero já confessar, sem precisar da mínima ameaça de tortura, alguma conspícua paixão pela infâmia.
Há um livro de patíbulos e piratas que a misericórdia divina cedo me colocou nas mãos e de que serei eterno e apoplético leitor. Escreveu-o, em estilo deliberadamente barroco, um escritor cego, de Buenos Aires.
Nesse livro, a que o autor chamou “História Universal da Infâmia”, o meu maior motivo de deleite é um pequeno conto de que é herói Billy the Kid, o assassino desinteressado. Um tiro feliz e cobarde catapultou-o para a fama. Disparou, coberto por uma barreira de homens temerosos, contra El Diego, um odioso mexicano que entrara no saloon gritando as boas noites a todos os gringos filhos de uma cadela que estavam a beber.
Billy morreu, pouco mais do que uma criança, aos vinte um anos, o exacto número de mortos que, “sem contar os mexicanos”, como escreveu Borges, devia à justiça dos homens. Liquidou-o, sem glória, nem ódio, o sheriff Pat Garrett, seu amigo.
Em Fort Summers, sentado e meio-escondido numa arcada obscura, Garrett disparou, antes de fazer qualquer pergunta, acertando-lhe em cheio na barriga. Ao fim de horas de agonia, Billy the Kid morreu. Em Fort Summers e arredores os precários habitantes exibiram-lhe com ferocidade o cadáver. E Borges com desditada ironia conclui: “Ao quarto dia enterraram-no com júbilo”.
Do que é que eu gosto – e gosto despudoradamente – nesta história? Do puro prazer narrativo com que Borges a trata e que é um convite para a lermos como se fossemos a velhinha docemente viciosa, que era o que Tennessee Williams chamava a Truman Capote.
Sem falsos moralismos, nem desculpas, quinze vezes levada ao cinema (mesmo agora, no “I’m Not There”, onde é uma das personae de Bob Dylan), a história de Billy the Kid converte o abominável em sublime. O que, se estivéssemos a ler as notícias do dia ou a consumir telejornais, nos pareceria apenas torpe e hediondo, ganha na literatura, nos filmes e nas canções, a grandeza piedosa e épica da lenda.
Há um livro de patíbulos e piratas que a misericórdia divina cedo me colocou nas mãos e de que serei eterno e apoplético leitor. Escreveu-o, em estilo deliberadamente barroco, um escritor cego, de Buenos Aires.
Nesse livro, a que o autor chamou “História Universal da Infâmia”, o meu maior motivo de deleite é um pequeno conto de que é herói Billy the Kid, o assassino desinteressado. Um tiro feliz e cobarde catapultou-o para a fama. Disparou, coberto por uma barreira de homens temerosos, contra El Diego, um odioso mexicano que entrara no saloon gritando as boas noites a todos os gringos filhos de uma cadela que estavam a beber.
Billy morreu, pouco mais do que uma criança, aos vinte um anos, o exacto número de mortos que, “sem contar os mexicanos”, como escreveu Borges, devia à justiça dos homens. Liquidou-o, sem glória, nem ódio, o sheriff Pat Garrett, seu amigo.
Em Fort Summers, sentado e meio-escondido numa arcada obscura, Garrett disparou, antes de fazer qualquer pergunta, acertando-lhe em cheio na barriga. Ao fim de horas de agonia, Billy the Kid morreu. Em Fort Summers e arredores os precários habitantes exibiram-lhe com ferocidade o cadáver. E Borges com desditada ironia conclui: “Ao quarto dia enterraram-no com júbilo”.
Do que é que eu gosto – e gosto despudoradamente – nesta história? Do puro prazer narrativo com que Borges a trata e que é um convite para a lermos como se fossemos a velhinha docemente viciosa, que era o que Tennessee Williams chamava a Truman Capote.
Sem falsos moralismos, nem desculpas, quinze vezes levada ao cinema (mesmo agora, no “I’m Not There”, onde é uma das personae de Bob Dylan), a história de Billy the Kid converte o abominável em sublime. O que, se estivéssemos a ler as notícias do dia ou a consumir telejornais, nos pareceria apenas torpe e hediondo, ganha na literatura, nos filmes e nas canções, a grandeza piedosa e épica da lenda.
ps - Uma semaninha sabática (uma eternidade na blogosfera) já me pôs fora das novas leis do "Geração de 60" (um post à semana) e nem sequer comentei a entrada da Sofia Rocha (surpreenda-nos! provoque-nos!). Para me redimir recorri a crónica publicada de fresco aqui. Espero que a manobra de diversão seja aceite.
3 comentários:
Pérfida, infâmia, liquidado pelo amigo, enterrado ao quarto dia com júbilo. Estamos a falar de Billy de Kid, certo?
Que me perdoem a pretensão mas aprendi a falar inglês através de Tennessee Williams. Vivi na Irlanda onde tomei conta de sete crianças e saía todas as semanas para ir ao teatro. Sempre peças de T.W. Assim o determinava o meu simpático acompanhante, fanático pelo autor, ciente de que, sem legendas, eu dali sairia com o inglês mais apurado.
Vinte e oito anos depois, procuro na memória qual será a «sweetly vicious old lady». Retenho a mulher madura em frente do espelho, talvez no Zoo de Cristal, gabando-se à filha dos seus 17 pretendentes. E uma outra peça, notável, da qual não lembro o nome, passada no início e final da vida de dois casais desencontrados entre si e frustrados nas suas ambições. De todas as memórias retenho o amargo das «vicious old ladies». Nada doce. Mas nem por isso menos saboroso.
Sofia Rocha,
Se percebo a sua insinuação: não, garanto-lhe que não, que esta minha digressão pistoleira é puramente literária. Qualquer semelhança com outra qualquer realidade adjacente só pode ser destrambelhada coincidência. Mas a vida prega-nos cada partida...
Ó Inês,
GOstava que nos contasse mais sobre as amargas old ladies. Palpita-me que vai valer a pena ouvi-la.
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