quinta-feira, 27 de março de 2008

A aluna, a professora e o telemóvel

Venho ainda falar do triste episódio que, há poucos dias, numa escola secundária do Porto, aparentemente opôs uma professora e uma aluna na disputa de um telemóvel. Digo aparentemente, porque a realidade pode bem ser outra. Na verdade, talvez não fosse mau olharmos para tudo aquilo como a disputa de uma professora e de um telemóvel pela atenção de uma aluna.
À primeira vista, de facto, as imagens divulgadas no YouTube mostram a professora e a aluna agarradas a um telemóvel, que cada uma parece desesperadamente querer só para si. O filme, porém, não conta a história toda. Porque a história começa, como todos os dias em todas as escolas acontece, com uma professora que, ensinando uma qualquer disciplina numa qualquer sala de aula, constata que uma aluna não a ouve, absorta que está no mundo do seu telemóvel. Ora, é para reganhar a atenção desta aluna que a professora lhe tira o telemóvel, dando origem ao conflito de que as imagens depois dão conta.
Isto é importante, porque assim posta a questão, não pode já tratar-se como se fosse um excesso inusitado de uma adolescente problemática. Ao contrário – e por mais que dizê-lo seja politicamente incorrecto – é bom reconhecer que a aluna também tem razão (sublinho: também). A verdade é que a questão que se põem diariamente os nossos alunos é esta: A quem ouvir? A quem prestar atenção? E o facto do telemóvel ser, por um lado, omnipresente, e, por outro, instintivamente mais atractivo do que a professora, revela bem o imenso investimento que nele todos despositamos e ao qual os alunos, obviamente, não ficam alheios.
Para além do divertimento intrínseco do telemóvel – a que a maioria dos adultos parece também não resistir e com o qual a professora não pode, de facto, competir –, é bom reparar como os meios de comunicação insistentemente impõem o seu uso: «Fale! Fale a 10 cêntimos por minuto! Fale a 5 cêntimos por minuto! Fale a 3 cêntimos por minuto! Fale de graça! Mas fale! Fale sempre! Fale agora! E envie mensagens todo o dia! Envie mensagens toda a noite! Esteja ligado a todo o mundo. Exista!»
Ao limite a mensagem é esta: Existimos através do telemóvel e sem ele, ao contrário, não existimos. Trata-se, além disso, de uma existência não só divertida, mas excitada e sempre nova. Ali controlamos (esta é uma outra ilusão, a do “contacto” com o mundo e do subsequente “controle” sobre o mundo) toda a informação. Tudo por ali passa. Tudo ali se passa: A vida privada (nossa e dos outros), a vida pública, a literatura e o desporto. Ali temos música; muita música; toda a música. Ali temos filmes, cinema, televisão. Ali falamos, discutimos e amamos. Ali vivemos e morremos. Todos os dias, 24 horas por dia.
Esta mensagem – a que os adultos não são de todo imunes, mas que às crianças, obviamente, mais afecta – é claramente reforçada pela maioria dos pais, que cada vez mais precocemente dão aos seus filhos telemóveis, nos quais creem encontrar uma ajuda para a sua tarefa de ser pais. Quem não ouviu já, ao vivo ou por interposta pessoa, a história de um pai, ou de uma mãe, dizendo ao professor do seu filho, ou filha, que durante a aula quer que este tenha o telefone ligado para assim poder saber sempre onde ele está? E quantos pais não se entregam a uma estranha sensação de segurança por saberem que os seus filhos têm um telemóvel quando, à noite, vão para sabe-se lá?
Ora, contrariamente ao que às vezes se diz, as crianças, de facto, aprendem. Por isso é que, desde sempre, vão à “escola”. O que não se pode é pretender que esta ensine com palavras o contrário do que com actos se faz cá fora. Na verdade, quantos pais não atendem os telemóveis interrompendo uma conversa com os seus filhos? Quantos adultos não calam os seus amigos para atenderem uma chamada? Quantos de nós não falamos com alguém enquanto mandamos a outrém uma mensagem? E quantos professores não atenderam já telemóveis nas aulas, perante a plateia atenta dos seus alunos? E quantos políticos não atendem os telemóveis durante os legítimos discursos dos seus pares?
É por isto que vos digo que a aluna também tem razão. A professora? Obviamente, tem toda. Mas a aluna também tem razão. Ela fez o que viu fazer. Fez aquilo que aprendeu. E quem ensinou fomos nós. Somos nós, portanto, que estamos em causa, no tribunal para onde vai esta criança (não deveria, aliás, ser sempre assim?): Quem queremos ser e que mundo queremos construir? Como vamos distinguir nas coisas diferentes graus de importância? Como vamos estabelecer relações sociais de confiança e de respeito? São estas as questões que suportam esta disputa de uma professora e de um telemóvel pela atenção da sua aluna.
Convenhamos, no entanto, que é uma luta desigual. Basta para isso lembrar que se todos falamos disto é porque o acontecimento foi filmado por um telemóvel. E se toda a sociedade está de acordo, ao que parece, quanto aos indispensáveis benefícios do uso permanente dos telemóveis, é a escola que, mais tarde ou mais cedo, vai ter que mudar, talvez no sentido da famosa máquina de ensinar, proposta, já a meio do século XX, pelo psicólogo norte-americano Burrhus Frederic Skinner. Os filhos dos nossos filhos, quem sabe, talvez já venham a aprender por mensagens de sms.

4 comentários:

Anónimo disse...

Bom post.

De facto, não sabemos como é que aquilo tudo começou, e seria útil sabermos. O que justificou que a professora retirasse o telemóvel à aluna? É legítimo que uma professora retire a uma aluna um seu objeto pessoal, como o telemóvel? Em que condições?

Será que a aluna estava a utilizar o telemóvel de forma a perturbar a aula? Como, explicitamente? Ou será que a aluna estava apenas a exercer o seu direito de prestar atenção a outra coisa que não à professora, sem no entanto com isso perturbar a aula?

Uma crítica ao post: a professora não tem TODA a razão. Ela de forma nenhuma pode ter razão em andar à luta com uma aluna. Um professor que se preze nunca pode rebaixar a andar à porrada com um aluno na sala de aula.


Luís Lavoura
Luís Lavoura

Anónimo disse...

Que pena que aconteça o que aconteceu quando se escreve um bom post. O mundo é isto mesmo falar para o vazio... fiquei com a sensação de que o Sr Luís Lavoura não entendeu uma única ideia que o texto do Gonçalo Pistacchini Moita transmite.A sociedade em que vivemos está doente e a doença tende a não ter cura. De Setembro a Março vão 7 meses, 7 meses de relação entre professor / alunos, o que ali se vê é a total ausência de afectividade, depois de 7 meses aquela professora tem uns monstros à sua frente incapazes de criarem laços. Pela mesma altura numa escola da margem sul passou-se o seguinte, um aluno tinha consigo uma lâmina de barbear, o professor foi junto dele e disse-lhe que não podia ter esse tipo de objecto retirando-o e guardou-o no estojo. O aluno revoltado com o acto do prof. levantou-se deu um encontrão ao prof que o deitou ao chão, foi ao estojo donde tirou a sua lâmina e depois partiu ao pontapé tudo o que o professor tinha dentro do seu estojo... Este acontecimento só tem uma diferença, não foi filmado. Mas são episodios como estes que se passam diáriamente nas nossas escolas. Ainda bem que este caso do telemóvel foi filmado, porque é apenas a gota de água da realidade que se agravou e agrava com a actual equipa ministerial.
BDB

Anónimo disse...

Podemos sempre dizer com Régio, "Não vou por aí!". Não vi, nem tenciono ver esse episódio. pela mesma razão que nunca vi um episódio do Big Brother. Ou porque não vejo canais generalistas.E porque não leio pasquins. Cabe ás gerações que estão a educar crianças, nas quais me incluo, demostrar que existem formas alternativas de estar. Que os pais e educadores, e os mais velhos em geral, merecem todo o respeito e consideração. Que os telemóveis e as tvs se desligam às refeições.E que nos dias de praia ficam em casa. E que o mundo não está nesses meios mas no convívio com os outros, nas viagens e nos livros, no cinema, nos museus, na música, na prática de desporto. E ensinar-lhe que, na maior parte dos casos, o estudo, assim como o trabalho, não é "divertido" ou "atractivo" e não é uma "opção", mas um dever e contribui para a dignificação do ser humano. A incongruência maior é que se assista a tantos tiques de "autoritarismo", como o citado por Paulo Rangel, e se tenha tanto medo de dar autoridade ás escolas e aos professores. Pensando bem, não há incongruência nenhuma.

Anónimo disse...

Este triste episódio veio acordar as nossas consciências para a realidade infernal que são as escolas portuguesas e a falta de autoridade dos professores. Mas também é triste ver como a comunicação social expreme até ao tutano este mesmo episódio (e tantos outros), passando diariamente as mesmas imagens. Será que no fim, quando daqui a alguns anos o processo terminar num qualquer tribunal, ainda nos vamos lembrar como ficamos todos chocados com o que aconteceu?
Parabéns ao Gonçalo por esta brilhante lição.
R.