Vocação Atlântica de Portugal
Alexandre Brandão da Veiga, segundo entendo de quanto escreveu, defende a vocação Europeia de Portugal em detrimento da sua natural vocação atlântica. Embora sendo a tese que vingou com a dita revolução de 1974, afigura-se-me ser tão errada, grave e perniciosa que não posso deixar de a comentar.
Rui Fonseca - Açores
A vocação atlântica Portugal não se deve tão só a razões de proximidade mas, acima de tudo, a razões de Geoestratégia. Não fora a sua vocação atlântica e Portugal teria sido inexoravelmente absorvido por Castela, tal como sucedeu com os restantes reinos peninsulares. Todavia, não se entenda também essa mesma vocação como mera fatalidade. Mais do que fatalidade, a vocação atlântica foi obra da inteligência e da compreensão tida por verdadeiros portugueses do superior destino e dos designados interesses permanentes de Portugal.
A vocação atlântica de Portugal também nada tem de histórico no sentido usualmente atribuído a tal expressão, a não ser, evidentemente, quando se olha para o passado e aí se coloca essa mesma vocação. Mas quem se deixa prender demasiado ao «histórico» acaba por deixar de ser capaz de pensar e, por consequência, antecipar, o futuro.
Defende Alexandra Brandão da Veiga derivar a vocação atlântica de Portugal de um erro de sinédoque, ou seja, to mar pelo todo o que é apenas parte. No entanto, olho para um mapa e localizo a Madeira no Atlântico Norte; no entanto, olho para um mapa e localizo os Açores no Atlântico Norte; no entanto, olho para um mapa e nítida é, ainda hoje, a crucial importância estratégica desse nosso Arquipélago cravado no coração do Atlântico Norte. E olho de novo um mapa e nitidamente vejo ainda o erro patético de Cabo Verde não ser já Portugal porque, na ânsia de sermos Europa nos idos de 74, por terrível conjugação histórica, termo-nos esquecido, a determinado momento, de defender o interesse de todos os portugueses, como verdadeiros portugueses eram então todos os portugueses de Cabo Verde.
Não, não há erro algum de sinédoque nem Portugal explorou apenas, como afirma Alexandre Brandão da Veiga, «de forma consistente», o Atlântico Sul. Explorou o Atlântico todo. Se, por razões históricas, de interesse estratégico, foi nas margens do Atlântico Sul que estabeleceu as suas principais possessões ultramarinas no Oceano que fizémos «Mare Clausum», tal nada significa para a tese em apreço.
Acusa ainda Alexandre Brandão da Veiga quem defende a vocação atlântica de Portugal, de «saltos de raciocínio» e «ignorância de lógica». Ironias do destino quando, «saltos de raciocínio» e falha de lógica, é exactamente quanto manifesta ao referir, muito significativamente, ter sucedido «à França potência continental», «a França potência colonial». Não há qualquer relação de oposição, contrariedade ou polaridade entre ser «potência continental» e «potência colonial». A França sempre foi uma «potência continental», como ainda hoje o é. Foi-o tanto enquanto nação estritamente confinada ao seu território europeu como nação alargada a possessões coloniais ultramarinas. Mudança essencial, de «vocação» teria havido se a França, de «potência continental», em «potência marítima» se houvesse transmutado. Porém, nunca tal sucedeu. A prová-lo, se mais necessário fora, basta o modo como ingleses e franceses sempre lutaram no mar, tornando bem patente a inabilidade de uma potência continental, mesmo quando melhor armada, para lutar em tais circunstâncias com o arrojo de uma verdadeira potência marítima.
De qualquer modo, muito significativo afirmámos constituir-se tal incongruência lógica porque, de imediato, patente torna também a real incompreensão de quanto de essencial separa uma potência marítima, como Portugal e Inglaterra, de uma potência continental, como sempre o foram uma França ou mesmo, aqui mais próximo, Castela e, por extensão, Espanha.
Para compreender a necessária, indispensável e decisiva vocação marítima ou atlântica de Portugal bastará atender ao processo das lutas entre Legitimistas e Liberais. Primeira falha ou erro dos Legitimistas foi terem deixado um núcleo de combatentes acantonados na Terceira. A partir daí, aliados a, e com apoio da, Potência Marítima da época, puderam os Liberais derrotar os Legitimistas, não em terra mas no mar, quando Napier destroça e destrói, sem apelo nem agravo, ao largo do Algarve, a Armada de D. Miguel. Sem capacidade de defesa no mar, os dias dos Legitimistas ficaram inexiravelmente contados, não obstante ainda a sua superioridade em terra, não obstante o apoio popular, não obstante a fraca condição dos Liberais.
Por outro lado, para compreender as sempre nefastas consequências para Portugal de uma opção Continental, basta lembrar o disparate da participação na Guerra da Sucessão, acabando por conduzir, entre outros aspectos não menos graves, à famigerada assinatura do não menos famigerado Tratado de Methuen.
Quem «defende a vocação atlântica de Portugal logo afirma termos de ser aliados especiais dos Estados Unidos»?
Verdadeira é em parte a afirmação de Alexandre Brandão da Veiga. Mas nessa afirmação, em parte verdadeira, muita erronia e incompreensão se esconde também. Em verdade, em boa verdade, só translatamente afirma a importância de uma Aliança de Portugal com os Estados Unidos da América quem defende a Vocação Atlântica Portugal. Só translatamento o afirma porque quanto constata quem defende a Vocação Atlântica de Portugal, é a importância, crucial, de uma Aliança com a Potência Marítima. Hoje como no passado, i.e., desde que Portugal, a primeira verdadeira Potência Marítima da História, deixou de sê-lo. Por isso mesmo a importância da Aliança Inglesa. Por isso mesmo, hoje, a importância de uma Aliança com os Estados Unidos. Seja através da NATO ou seja de que forma for.
Pagámos já com língua de palmo, como em bom vernáculo soe dizer-se, tal necessidade, tais alianças? É indiscutível que sim. Todavia, não obstante tudo quanto nos custou, tudo quanto pagámos, tudo quanto perdemos, foi quanto nos permitiu continuarmos independentes. Pesada independência, sem dúvida, mas independência e independentes, apesar de tudo. E isso não deixa de ter, de ser, valor supremo .
Alexandre Brandão da Veiga defende, acima de tudo, e antes de mais, a Europa _ só depois Portugal. Defendemos, acima de tudo, e antes de mais, Portugal _ e apenas Portugal verdadeiramente defendemos, até ao limite das nossas capacidades. Por isso defendemos também a Vocação Atlântica de Portugal. Vocação que tanto menosprezo e desdém lhe merece.
Infelizmente, vitoriosa é hoje a afirmação da vocação europeia de Portugal. Infelizmente, com os resultados que a todos estão patentes, sem sofismas. Só não entende quem não quer entender, só não vê quem não quer ver, só não preocupa a quem Portugal, antes de mais e acima de tudo, não preocupa
5 comentários:
O Gonçalo e o Alexandre podiam todavia também considerar algo que para mim é cada vez mais evidente quando leio sobre períodos passados. As duas “vocações” não são mutuamente exclusivas, mas sim complementares. Na história económica isso é muito evidente, mesmo durante o Estado Novo. A retórica era uma e a prática outra, como bem se sabe hoje. Mas no século XIX, o mesmo se passava. Portugal estava cada vez mais ligado ao Brasil por via de emigração e à África, depois de Berlim, ao mesmo tempo que se esforçava por dar cartas na Europa. E se formos mais para trás, talvez conclusões semelhantes se possam retirar.
Concordando um bocadinho com todos, concordo sobretudo com o Pedro Lains (embora me pareça que o Alexandre não terá dito exactamente o que o Gonçalo Magalhães Collaço lhe atribui). As duas vocações, de facto, não são nem devem ser incompatíveis. Ao contrário, julgo mesmo que necessitam uma da outra se se quiser realizar Portugal.
Na verdade, a relação entre a Europa e o resto do mundo (relação que implica dois sentidos) deverá ser feita através de Portugal no que diz respeito ao mundo de expressão portuguesa. Portugal, melhor do que ninguém, poderá cumprir a tarefa de fazer comunicar (lato sensu) a Europa e os continentes americano, africano e asiático, através dos respectivos países de língua portuguesa.
Não o faz, porém, com o prejuízo de todos. E não o faz porque Portugal teima em não ser! E é nesse sentido que temos vergonha dos nossos governantes que, frente aos outros Estados, nos parece que se põem nos bicos dos pés (vergonha, na definição de Jean Paul Sartre, é um reconhecimento negativo de nós mesmos).
A questão da vocação de Portugal permanece, portanto, em boa parte, teórica, porquanto Portugal não é chamado para coisa nenhuma - com efeito, não se chama quem não é!
Agora, se decidirmos ser; se decidirmos pôr-nos a caminho; se decidirmos calçar com orgulho os nossos sapatos e afirmar-nos como centro do enorme mundo português... Ah!, então seremos chamados a cumprir essas duas vocações - e os que falam português, aquém e além mar, participarão com alegria na construção humana de um mundo melhor.
Também a mim me parece que a vocação atlântica de Portugal não é minimamente incompatível com o projecto de integração Europeia. Muito pelo contrário é uma forma de Portugal continuar a afirmar a sua singularidade e independência no seio do projecto europeu.
Dito isto, e se me afasto do Gonçalo no que diz respeito à sua visão sobre a integração europeia, não lhe posso dar mais razão no que diz respeito à defesa da nossa vocação atlântica. Para não invocar mais argumentos deixo só este: Portugal tem uma área marítima sob sua jurisdição que é dezoito vezes maior que o seu território terrestre e que corresponde a grande parte do Mar da UE. Boa parte do Atlântico «é» Portugal. Negar este facto e esta vocação é, concordo em absoluto, um enorme erro económico, cultural e geoestratégico.
Agradeço os pertinentes comentários do Pedro Lains, Gonçalo Pistacchini Moita e Pedro Norton que dão azo a tentar melhor explicitar quanto não terá ficado suficientemente explicitado ou explicado no texto inicial.
Portugal Continental situa-se na Europa. É uma simples evidência. Como nação europeia que sempre o foi também, Portugal não só nunca deixou de estar ligado, de um modo ou outro, aos destinos desse mesma Europa como, mais do que isso, a Europa Moderna é, antes de mais e acima de tudo, obra de portugueses. Nesse sentido, Portugal nunca deixou, como não podia nem poderá alguma vez deixar, de se relacionar com as restantes nações europeias. Mas sempre poderia e pode fazê-lo de dois distintos modos, tendo consciência e afirmando, consequentemente, a sua primordial vocação marítima ou travestindo-se em nação de vocação continental e procurar agir de acordo. O que não pode é tentar fazê-lo de ambos os modos em simultâneo, sob pena de funda esquizofrenia e completo dilaceramento, um pouco como sucede hoje, com os resultados que estão à vista. Ter Portugal uma primordial vocação marítima não significa um necessário e completo alheamento da Europa, como apagando-a dos seus actos e estratégia política, como se não existisse ou, pelo menos, possível fora viver em completo alheamento da sua situação geográfica. Tal loucura nada tem a ver com vocação marítima ou continental, teria apenas a ver com absoluto disparate.
Na verdade, a vocação de uma nação não pode, nunca pode, ser simultaneamente marítima e continental por ser contraditório em si mesmo, daí resultando inclusive uma das principais críticas deixadas ao texto do Alexandre Brandão da Veiga. Para se compreender a radical diferença, correspondente a dois diferentes modos de afirmação de um povo, dei o exemplo de Inglaterra e França, como poderia ter dado o exemplo de Portugal e Espanha e os óbvias e distintas formas de procedimento no que respeitou à conquista e colonização dos «novos mundos». Não por acaso o Brasil é hoje o Brasil e a América do Sul legada pelos espanhóis, é Cuba, México, Argentina, Colômbia, Peru, Chile, não valendo sequer a pena todos enumerar. Não há aí significativa diferença?
Com certeza, as nações, os povos, não têm uma unívoca e absoluta vocação marítima ou continental. Por vezes, ambas as vocações emergem num mesmo e simultâneo momento. Em tais circunstâncias, o choque, porém, é inevitável, como, infelizmente, bem o sabemos pela nossa História, aí residindo talvez até uma boa explicação para muitos dos mais dilarecentes e graves problemas vividos por nós ao longo dos séculos. Bastará talvez lembrar dois paradigmáticos casos como os de D. Henrique vs D. Pedro ou D. Francisco de Almeida vs D. Afonso de Albuquerque. Muito mais grave e fundo, na verdade, do que tão normal como sempre necessária afirmação de uma vocação marítima sem esquecer uma mesma indispensável afirmação na Europa. A questão, neste particular, reside apenas nos modos e visão de procedimentos em relação a tal afirmação.
Neste enquadramento, julgo o Pedro Norton poder agora compreender também um pouco melhor a minha posição. Embora se me afigure em parte legítima a sua dedução em relação às minhas reticências sobre o projecto de Integração Europeia, mesmo que eu tal não o tenha explicitamente afirmado. Está absolutamente certo quando afirma não ser a afirmação da nossa vocação atlântica incompatível com um projecto de Integração. É certo ter eu algumas reticências no que respeita ao projecto de Integração Europeia, sobretudo após a transmutação da Comunidade Económica Europeia na actual União Europeia, mas tais reticências não vêm agora ao caso. O que vem ao caso e defendo, como já deixei exposto noutros textos, é o perigo de sermos inexoravelmente destruídos nesse processo, até à mais completa irrelevância, se, entretanto, não tivermos uma real consciência da decisiva e crucial importância da afirmação plena da nossa primordial vocação atlântica e perdermos, de uma vez por todos, quaisquer veleidades de uma fatalmente fruste vocação continental.
Ora, encontrando no Pedro Norton também um estreme defensor da tese da nossa vocação marítima, secreta esperança tenho de o ver um dia defender também que, não sendo a nossa vocação marítima, em si mesma, incompatível com o projecto de Integração Europeia, dados os perigos inerentes para nós, portugueses, tal projecto só poderá ter sentido, uma vez mais, para nós, portugueses, se nunca esquecermos e sempre bem presente tivermos essa mesma vocação e os nossos correlativos interesse permanentes de onde decorre, vendo também como em causa está, nesta questão, verdadeiramente, Portugal como nação verídicamente indenpendente.
Ainda uma última palavra ao meu homónimo Pistacchini Moita. Pleno acordo: falta tornar Portugal em acto. Mas cuidado com o José Gil, típico estrangeirado à la Eduardo Lourenço, muito ilustradas, lidas e doutas personalidades que tudo compreendem e abarcam menos quanto Portugal é para ser. Mas isso, i.e., do destino transcendente de Portugal, de onde decorre também a sua vocação marítima como um dos meios para o cumprir, tema demasiado complexo se manifesta para o podermos tratar em duas penadas de displicente comentário. Todavia, fatalmente, ao mesmo teremos de regressar em breve. Sem dúvida.
A muralha alta e dura dos pirinéus separa-nos do inferno que é a Europa. Que rídiculo pressupor e invocar qualquer relação com essa gente continental para onde os castelhanos nos querem arrastar, condicionados que estamos a frágeis passagens a um e outro lado da cordilheira. (Sempre que aquela gente tem uma indisposição resolve impedir a passagem e lá ficam os nossos camionistas entalados.)
O mar é nosso, o continente é deles.
Deixemo-nos de parvoíces...
Gonçalo, nem Portugal é Continental, muito menos se situa naquele inferno que é a Europa com o cão de multiplas cabeças à guarda das suas portas no cabo de seu nome.
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