quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Eis A Minha Obra

I love the game. Gosto de futebol. Gramo à brava o futebol que aprendi a ver em África. E aprendi a vê-lo como quem vê dançar o tango. No Estádio dos Coqueiros, os seniores do Benfica de Luanda e do ASA, no Campo de São Paulo todos os juniores. Quando entravam em campo, os jogadores eram guerreiros que exibiam a insolência da sua individualidade, mestres de cerimónias tão civis que jamais sairiam de campo sem oferecer a cada espectador um toque magistral: uma troca súbita de pés, um sprint que sacudisse a sonolência da noite tropical, uma chulipa arrebatadora, o vôo vertiginoso de um guarda-redes. O que, aos espectadores, nos dilatava o peito de orgulho era a incalculada alegria de jogar futebol que aqueles humildes artífices exprimiam a toda a extensão do terreno. De Cerqueira a Gomes, de Justino a Dinis ou Inguila, passando pelo divino Jacinto João. Ganhava-se, perdia-se, mas o que nos interessava é que o céu se enchesse de estrelas: um tiraço de fora da área que fosse golo, o passe de bandeira a que o avançado-centro dissesse sim com a gentileza de um noivo, três obscenos dribles ceifados por um sarrafo impiedoso.
Em olimpicamente melhor, em edição de luxo, vi depois no cinema, nas matinés do Vilinha, Pelé a pôr em causa as leis da física com a improbabilidade dos movimentos que dele emanavam como se fosem entidades autónomas. Dei-me conta da adjectiva incapacidade da língua portuguesa para enumerar os prodigiosos incidentes que se estabeleciam entre o esférico e os pés, joelhos e calcanhares do brasileiro.
Depois vi – vi mesmo – entrar Eusébio no Estádio. Era força e paixão puras. Nunca confiei em mais ninguém como confiei nele. Era preciso disparar com soberba e arrogância a 40 metros da baliza? Era preciso deixar cinco atónitos defesas para trás? Era preciso fuzilar de cabeça no incauto risco da pequena-área? Ele faria sempre por nós o que fosse preciso: por nós ele entraria por ali dentro com bola e tudo.
Hoje, Cristiano Ronaldo faz 23 anos. Reencontro nele a alegria do futebol da minha adolescência. Finta como quem dança. Corre como um miúdo que vai ter com a namorada. Remata com a violência de quem se julga imortal.
Aconselhado pelo tricolor Nelson Rodrigues, Deus, lá em cima, como já dissera dos seus dilectos filhos Pelé, Eusébio ou Maradona, olhou agora para o fulgurante livre marcado pelo português Ronaldo e fez passar, por entre as ondas de aquecimento global, um fresco sussuro que nos diz: “Eis a minha obra”.

7 comentários:

Táxi Pluvioso disse...

É um game um pouco aborrecido e além disso é preciso apreciar homens em calções (not my cup of tea). Agora a conferência de imprensa, isso sim, é desporto a sério.

A chegada do Moureto ao aeroporto da Portela também não esteve mal.

Anónimo disse...

Aberto o precedente, cá vai. Antes de amante de futebol, sou um incondicional do Benfica. Doente em estado terminal. Irrecuperável. Obsessivo. Vibro infinitamente mais com um Benfica-Mexilhoeira Grande do que com um imaginário Portugal-Brasil numa qualquer final de um Campeonato do Mundo. De resto, o que não é a minha «cup ot tea» é a selecção nacional, essa terra de ninguém onde o homem tenta misturar o que Deus mandou separar.
Por tudo isto já terão adivinhado que não consigo vibrar com os rodriguinhos do Ronaldo com a grandeza de espiríto (?) com que o faz o Manuel. Não esqueço, não consigo esquecer, a sua origem, muito menos lhe perdoo o seu pecado original.
E estou genuina e absolutamente convencido que não, chega, nunca chegou e nunca chegará aos calcanhares do meu velho Chalana (que além do mais, em vez daquele arzinho metrosexual, era senhor de um magnifíco e farto bigode e de uma histriónica Anabela como já não se fazem). E se falo no Chalana, caro Manuel, é porque quero claramente significar que chamar o Eusébio para um post sobre o «brinca-na-areia-da Madeira» me parece francamente ofensivo!

Helena Forjaz disse...

O absinto afinal não é um problema.Com o testemunho do Pedro Norton não restam dúvidas que basta o Benfica, para tornar os mais racionais em verdadeiros doentes obsessivos em estado terminal. Não preciso preocupar-me, o absinto não chega a deixar os meus filhos em tal estado. Eles ainda são do Sporting!!!

Anónimo disse...

Constato que não há nada como um Benfica-sporting para pôr gente de tão poderoso intelecto a falar com garra ...
José Santos
P.S. Entre outras ocorrências, a falta de caps-lock no (sempre) segundo participante do derby não é,evidentemente, obra do acaso.

Anónimo disse...

Estou com Pedro Norton, assino por baixo. Além do pecado original, imperdoável, este Cristiano Ronaldo é jogador de feira - que o diga Manuel S. Fonseca: «finta como quem dança»; «corre como um miúdo que vai ter com a namorada»; remata com a violência de quem se julga mortal». Eusébio não fintava: arrancava como uma pantera, bola colada no pé direito, e deixava os adversários colados à relva com mudanças repentinas de velocidade e direcção. Chalana fintava - mas só quando a finta era mesmo necessária: não brincava com a bola, nem se entretia com rodriguinhos como quem se exibe na praia para namorada ver. Cristiano Ronaldo, meu caro Manel, é um ilusionista. Aquele livre de que falas é um prodígio do acaso: se reparares, verás que a bola bate num jogador da barreira. Sobre a violência do remate, queria ver o rapaz com as velhas bolas de cabedal. Para terminar: se Cristiano Ronaldo alguma vez tivesse jogado no Benfica, o rapaz merecia ser eleito como o melhor jogador da actualidade...

joshua disse...

Manel, este teu texto foi também um portentoso Livre Directo.

Parabéns!

PALAVROSSAVRVS REX

Manuel S. Fonseca disse...

Agradeço a pluviosidade dos comentários. E sem tirar uma vírgula ao Ronaldo, permitam-me o Pedro, o JS e o MC que ponha um sonoro e altivo ponto de exclamação no nosso Benfica. São milhares de doces vitórias: temos mais campeonatos, temos mais taças. Poderia evocar as 7 finais da Taça dos Campeões Europeus, poderia evocar a forma como liquidámos o eufórico Real Madrid, posso até dar-me ao luxo de chamar ao podium um empate de sangue, suor e lágrimas, 4-4, com o Bayer Leverkusen. E nem sequer vou falar do feito imortal que foram os 3 a 1 ao Arsenal, em Londres, se não ainda acabaremos ungindo o feito com um viril e nobre vale de lágrimas.