quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

As Ideologias, a Questão Nacional, os Partidos Políticos e Portugal (IV)

Eis-nos chegados ao quarto e último acto desta minha já longa declaração de princípios, dedicado a Portugal. Em vista quer da intenção, quer do tema, tentarei neste post ser um pouco mais literário – Deus sabe os perigos que isso implica!
Fazendo rapidamente a ligação com os posts anteriores, digamos que, ao nível das ideologias, prevalece, nos nossos dias, uma ideologia de cariz totalitário segundo a qual a política, maquiavélica no espírito e positivista na forma, não é mais do que o exercício de regulação da economia, cujo carácter supostamente progressivo e global alimenta a crença geral da paz no futuro.
Este carácter global com que a economia hoje se nos apresenta é o “facto” a partir do qual a política, pretensamente an-ideológica, se tem vindo a subtrair ao domínio nacional, ao mesmo tempo que cada vez mais abertamente se tem imposto uma determinada regulação política internacional, ou melhor, o domínio economicamente condicionado de um pequeno número de países sobre o resto do mundo.
Ganha a batalha ideológica, tanto do ponto de vista teórico (veja-se, por todos, o livro amplamente divulgado de Francis Fukuyama, justamente intitulado O Fim da História e o Último Homem) como do prático (os partidos políticos, hoje, não se distinguem pela ideias e pelos actos, mas pelas palavras e pelos fatos), os inimigos da democracia voltam as suas armas contra as autonomias nacionais, as quais terão que encontrar, dentro de si mesmas, a força suficiente para contrariar a usurpação totalitária da actual tendência globalizante, deste modo participando na construção em curso de uma nova ordem mundial. É nesta perspectiva que importa questionar Portugal.
Ora, do romanço ao romance vai toda uma evolução semântica que transforma a língua de um povo no instrumento que este utiliza para contar a sua própria história. É bem o caso de Portugal, onde, mais de quatrocentos anos volvidos sobre as primeiras manifestações da indómita vontade dos seus fundadores, esta se afirmava ainda nas palavras do Padre António Vieira, que gritavam: «Para nascer, Portugal; para morrer, todo o mundo!»
Hoje, porém – como dizia, no seu livro, José Gil –, Portugal tem medo de existir. Julgo ser um understatement. Portugal desistiu de ser há muito tempo e persiste nessa sua decisão. Não interessa aqui ver quando e como isto aconteceu, mas sobretudo notar que três séculos de dilaceração interna, culminada por uma sanguinolenta luta entre irmãos, não resultaram em literatura que nos reescrevesse, que nos refundasse.
Portugal permanece esquecendo-se. Somos certamente o único país do mundo que, depois dos jornaleiros, dos pedreiros, dos canalizadores, dos cientistas, dos futebolistas e dos gestores, contamos agora, entre os nossos emigrantes, os políticos. Ora, se estes têm em comum com os restantes o facto de serem competentes e de não acreditarem no seu país, a verdade é que, ao contrário de todos os outros, juraram, justamente, defendê-lo (foi o caso de Durão Barroso, de António Guterres, de Ferro Rodrigues, de João Cravinho…), pelo que a sua escolha se pode revelar chocante. No entanto, ninguém se choca. Porquê? Porque desistimos de ser!
A coisa é bem visível no descuido e na irracionalidade com que é tratado o “nosso” espaço público. Não vou aqui falar no desordenamento do território, na ineficácia do planeamento, nos descaminhos das regras, na confusão dos caminhos, nos buracos das estradas, na intransitabilidade dos passeios – e, já agora, na má apropriação que todos fazemos de tudo isto –, mas, simbolicamente, por tudo isto, do modo como são colocados, nas ruas, os nossos sinais.
Ora, qualquer português sabe que, em Portugal, não se deve ligar nenhuma aos sinais. Um estrangeiro, do mesmo modo, rapidamente o apreende. Porque há, então, sinais? Justamente para fingirmos que somos. Exemplifiquemos:
Estamos no Algarve (região turística “estratégica” para Portugal), digamos, em Almancil, e queremos ir para um qualquer outro sítio: seja para Faro. Afortunadamente, no meio desta vila tão tipicamente assolada pelo calor do Norte de África, vemos um sinal indicando: Faro. Confiadamente, seguimos em frente. Passados dois cruzamentos e três bifurcações, já com medo de nos termos enganado por não termos visto mais nenhuma placa assinalando a direcção de Faro, chegamos felizmente a uma rotunda. Ao fim de quatro voltas a esse recém-construído monumento municipal, lá aceitamos o facto de que nenhuma das três saídas tem a indicação de Faro! Corajosamente, metemos por uma delas e seguimos adiante (Descartes explicou assim as vantagens do método). Três quilómetros à frente e circundadas mais três rotundas, onde o episódio invariavelmente se repete, admitimos finalmente estar perdidos. Nesta altura, ou perguntamos o caminho a alguém que, com uma simpatia bem portuguesa, nos lembra todas as curvas por que haveremos passar até chegarmos a Ourique, ou, temerariamente, seguimos em frente, na esperança de ir dar a um qualquer lado. E o facto é que, com mais ou menos dificuldade, lá acabamos por dar com o caminho e eventualmente chegamos a Faro.
Por outro lado, contrastando com a ausência generalizada de sinais que, em todas as nossas estradas, eficazmente nos indiquem a direcção a seguir, temos, sobretudo nas cidades, aquilo a que se pode chamar uma exuberância sinalética, caracterizada por sinais caídos no chão; por sinais virados ao contrário; por sinais colocados exactamente na curva na qual devíamos ter virado; por sinais postos atrás de árvores que, embora impedindo a sua visualização, beneficiam importantemente o ambiente; e, o que julgo ser o mais significativo, por sinais que escondem outros sinais!
Garanto-vos que é admirado que por vezes me pergunto como pode alguém, cuja tarefa é, na sua cidade, colocar um sinal com indicações importantes para as outras pessoas, colocá-lo à frente ou atrás de um outro, de tal modo que deixe um ou ambos escondidos, seguindo depois o seu caminho com a consciência do dever cumprido!? E a única resposta que encontro é sempre a mesma: Ali não é Portugal! Aquele lugar não lhe pertence nem ele pertence àquele lugar.
Ora, o espaço público não é nosso porque nós desistimos de ser! Por isso mais de oito séculos de história não se convertem hoje em literatura. Por isso no país onde nasceu a quinta língua mais falada do mundo as edições de livros têm tiragens de pouco mais de mil exemplares. Por isso temos professores desempregados quando em Moçambique já se ensina o francês. Por isso não defendemos os nossos costumes e as nossas tradições. Por isso descuramos o nosso território. E por tudo isto os brasileiros contam anedotas sobre nós!
Disse mais acima que este não é o lugar para ver onde e quando começámos a desistir de nós. Penso, porém, que teremos que descobri-lo se quisermos reassumir a nossa presença no mundo. Veremos, então, que outros têm escrito a história por nós, às vezes mesmo contra nós, com prejuízo nosso e do mundo. Portugal não está escondido, porém, num qualquer recanto da história. A história não é assim. Portugal está dentro de nós, seja lembrado ou esquecido. Saibamos ir dentro de nós e reescrever Portugal!

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