sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Héraclite, Allégories d’Homère, Les Belles Lettres, Paris, 2003


Vários lugares comuns: antigamente as pessoas eram efectivamente respeitadas e não objecto de de maledicência; a cultura grega, tão uniforme, tão completa e serena em si mesma, tão racional.

O Heraclito de que aqui falamos não é o filósofo, o obscuro, mas o filólogo. Não o Heraclito, “rei” em Êfeso, mas o Pôntico. Não o filósofo do século VI a.C., mas um filólogo do século I d.C. Mais de seiscentos anos os separam, tanto quanto D. João I está longe de nós. Que duas figuras tão diversas e em épocas tão diversas, pertencendo as duas à cultura grega é certo, fossem idênticas seria de espantar.

Heraclito é mais um dos exemplos de como a cultura grega padeceu da fractura entre a cultura filosófica e filológica, em suma entre a filosofia e a erudição. Uma luta que ainda hoje em dia se sente quando uns preferem Wilamowitz-Moellendorf a Nietzsche, ou Heidegger a Jaeger, ou Croce a Mondolfo, ou Sartre a Meillet, como se uns ou outros se pudessem substituir. E esta luta podia ser feroz.

Hoje em dia tem-se a ideia do divino Platão, do religioso Platão, mas esquecemo-nos de como ele poude ser feroz com os mitos gregos. Durante séculos houve quem não se esquecesse. Muitos dos eruditos não o fizeram. E Heraclito é um dos muitos exemplos, e talvez o mais arrebatado. O seu ódio por Platão é imenso, a sua critica irritada contra o blasfemo Platão. Porque o santo e o blasfemo sempre estiveram próximos.

Heraclito é também um de muitos exemplos de como a visão pacata da cultura grega apenas tem sentido para quem a vê morta, para quem nunca a viveu. A ideia de alegoria tem a sua marca etimológica muito fresca em Heraclito. A alegoria leva para outro sítio. Não se satisfaz com o texto. Sabe que o texto pode gerar insatisfação. Por isso leva-o para outro lado. A alegoria medieval é bem outra coisa. Originalmente a alegoria implica vir de um ponto de partida para chegar a outra coisa. A alegoria medieval começa logo no ponto de chegada. Sabe que apenas se está a representar algo que é o ponto de partida do discurso.

Hoje em dia há quem leia a Bíblia e fique insatisfeito com ela. E por isso compara com uma cultura grega supostamente serena e imutável que se teria satisfeito com os seus textos fundadores. Nenhuma cultura é assim, nem nunca foi. Apenas está satisfeito com a letra do texto quem nunca o percebeu. Fazer entrar a alegoria na análise do texto pressupõe várias coisas, ricas, mas desagradáveis. Que o texto tem de ser traduzido, que só se pode traduzir levando-o para outro lado, para outro sentido. Mas a alegoria grega fez algo mais que a simples teologia cristã. A teologia cristã, pelo menos ortodoxa, nunca abdicou da narrativa, ou seja da carne. A teologia grega tende cada vez mais para o que Proclo fará como chave de ouro: a destruição de toda a narrativa, de toda a carne do mito. Se Proclo levou a religião grega para bem fora do que era a sua vivência carnal é porque esse trabalho já tinha na sua época mais de mil anos de percurso. E Heraclito é uma das pedras nesse caminho.

Mais uma vez tudo isto parece irrelevante para o tempo actual. E mais uma vez não é. Quando da discussão da constituição europeia foram os mesmos que recusaram o cristianismo como fonte europeia que vieram a aceitar a cultura grega como herança da Europa. No que têm razão, mas exactamente por não saberem em que a têm. Porque a cultura grega não é apenas o discurso de Péricles, em suma, bem datado e bem situado geograficamente no seu espírito. Nem sabemos se foi mais discurso de Tucídides que de Péricles. Se como europeus somos herdeiros da Grécia, é porque somos igualmente herdeiros da sua infinita riqueza, da sua natureza multiforme, das suas lutas, das suas dilacerações. Sem o discurso de Péricles teríamos perdido uma pérola. Só com ele esquecemos todo o resto do tesouro.


Alexandre Brandão da Veiga

http://www.lesbelleslettres.com/livre/?GCOI=22510100524570

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