domingo, 6 de janeiro de 2008

Difícil convívio

Decidi também aterrar em 2008, sem querer entrar na discussão sobre o Liberalismo e o Socialismo que, despoletado pela crise do BCP, o Manuel S. Fonseca e o Gonçalo M. Colaço têm mantido. Nem vou antecipar nenhuma polémica com o Pedro Lains que já foi dizendo que um dia destes nos viria explicar as razões pelas quais o Estado é tão detestado, nem discutir se é por haver regras que há respeito pelas liberdades .

Nos debates que se assistem hoje em dia, e de que o nosso G60 parece ás vezes ser um espelho, há posições de princípio definidas pelos oponentes, que inviabilizam o objectivo de qualquer conversa reduzindo-a, apenas, ao plano estéril da polémica. Há um evidente excesso de informações, formações, imagens, memórias, crenças, proselitismos escondidos ou evidentes, que tornam o convívio impossível nesta Babel de liberdades ilusórias.
Ao seguir muitos debates, confrontos, discussões, diálogos, monólogos, manifestos, frente-a-frentes fica-se com a sensação de que todos eles começam num ponto demasiado adiantado que necessitava previamente de uma longa e demorada reflexão sobre os pressupostos que estão na origem de cada um dos conceitos e imagens que os diversos interlocutores vão exprimir. Ainda assim, seria difícil porque estando ausente um objectivo comum não há finalidade nem conclusão possíveis.
Uma das razões para essa divergência insolúvel é a irresponsabilidade com que contemporaneamente se debate. Ou seja, a liberdade de opinião não inibe os ignorantes de se exprimirem com a mesma convicção, ou até com mais, que aqueles que longa e detidamente reflectiram sobre o que afirmam. É uma frescura que a sociedade actual promove e defende para induzir a ideia de que somos todos iguais e que somos todos igualmente irresponsáveis, só que, também por isso, igualmente manipuláveis e postos na ordem e no respeitinho das regras porque quem manda é que manda. E, para dar um certo colorido, as frescuras são graças e levezas divertidas, dão a sensação de que se é aberto, jovial e sensível, porque não? Pensamentos complexos e maçadores, para quê? Se cada um tiver casa, carro, férias, mulher ou marido e um ou dois filhos, possa ir às compras, tenha uns amigos para conviver, puder ir ver umas exposições e uns filmes para ter opinião e uma certa perspectiva de melhoria ou promoção financeira, que mais pode querer da vida? Já está bem e não precisa de complicações de pensamentos pesados e complexos que perderia um tempo infinito para os perceber e depois, caso os percebesse, não lhe iam servir para nada porque não tinham aplicação na vida prática. A vidinha é que importa, mais o sossego e a autocompaixão.
Deveria, agora, concluir que certos assuntos são para aqueles que por eles se interessam e que para os compreender e reconhecer necessários tiveram uma certa iniciação. Não é para todos. Simplesmente, apesar de assim ser, o que domina nos quadros sociais contemporâneos é a valorização da opinião comum para com ela se anular e extinguir o saber dos que sabem e assim escravizar as populações num misto de animação cultural e alimentação da vidinha para que nada lhes falte e estejam quietinhos. A destruição do pensamento é no fim o que está verdadeiramente em riscos nas sociedades contemporâneas. E está em risco porque o pensamento é individual e não colectivo como a opinião, porque o pensamento gera diferenças e o mundo actual só reconhece igualdades, porque o pensamento exige uma categorização e o pensamento comum só exige sentimentos (quanto mais vazios melhor). O pensamento é um perigo para o mundo actual. Pensar é perigoso. Cuidado não penses muito!
Muitos estão convencidos que pensam. Presumem que pensar é inerente à sua superioridade umas vezes familiar, outras vezes académica, outras vezes adquirida pelo círculo de amigos, outras vezes pelo capital de queixa que lhes engrossa as veias, enfim, muitos estão convencidos que pensam por inerência e não pensam. Ter opinião sobre a proibição de fumar em lugares públicos fechados não é pensar.
Mas podiam pensar, se um rebate de consciência os fizesse mergulhar no fundo de si e daí partissem para um reconhecimento de si próprios e do mundo, não a partir do ilusório real que dança na sua frente, mas a partir da voz interior que os fizesse não ter pressa de concluir, que não lhes excitasse a vaidade, que não lhes ateasse a soberba, mas que os deixasse ficar na contemplação do que se revela sem o hábito de tudo reduzir a uma expressão extrínseca e sem vida. É que por mais voltas que demos o pensamento não nasce da natureza e tudo o que da natureza retiramos para sustentar o pensamento não é da natureza que tiramos mas e sempre do próprio pensamento. Chega a ser difícil perceber o que seja, isso que em nós nos é mais presente que nós próprio. E, por isso, o que distingue o filósofo do homem comum é a capacidade de se distanciar de si mesmo para se ver reflectido e assim ter a noção de si que potencia o saber. É o pensamento que forma os conceitos que legendam a nossa imago mundi. O mundo natural não tem a reflexão de si, tem apenas o fluxo. Pensar é para compreender e ao contrário da ilusão da opinião que todos professam e têm licença de emitir, pensar para compreender leva tempo. Demora. É uma vida. Mas a opinião, tão eficiente quanto vazia, não é vida, é morte.
O que está em causa, em muitas das polémicas, são visões diferentes do que é a filosofia que nos é inerente e de quais são as suas finalidades. Podemos fazer exposições mais ou menos doutrinadas, mas fica sempre a sensação de que há uma diferença de perspectiva, ou uma diferença de ponto de partida, que por vezes torna inviável, não digo uma concordância, mas pelo menos uma atenção à razão de ser do que cada outro afirma.
Há um certo vício dialéctico que produz diálogos eruditos, mas desnecessários, porque são fruto de uma incapacidade de ouvir o outro sem o catalogar num posicionamento genérico, de admitir que o que pensa tem com certeza uma escola, ou uma formação por trás, mas é também, quando se afirma, uma nova perspectiva que não se reduz ao pensado e ao catalogável.
Importa que venhamos a terreiro sem manuais nem dicionários às costas e discutirmos os conceitos e as imagens a partir da proposta que cada um trouxer. Ou então, corremos o risco de ficarmos contaminados inexoravelmente pelo vício dos políticos que, sobre qualquer posição de qualquer outro que não seja do seu partido, estão contra, desconfiam, produzem juízos de intenção, ripostam como quem denuncia, acusam como quem desmonta uma “cabala”, ou seja, não acreditam no outro.
Se entendermos que a sabedoria é o que está nos dicionários e que o homem é uma inutilidade num mundo feito, então, pouco podemos fazer para chegar a algum ponto que a todos convenha. Se pelo contrário entendermos que somos no nosso tempo, não apenas os intérpretes do que foi escrito e feito mas, sobretudo, os responsáveis pelo mundo que se está a fazer, ainda que com um pequeno contributo dado a partir da nossa minúscula dimensão, então o saber terá que sair das estantes e viver na dúvida do presente e na esperança do futuro.

5 comentários:

Manuel S. Fonseca disse...

Caro João,
Não podia discordar mais. Na net – na rede, como em bom português se deve dizer – o convívio é fácil e há nele mais sinceridade e saber do que na vazia solenidade das poses acacianas do passado. O que não é possível, na rede, é espartilhar o convívio. A ninguém, ao contrário do que acontecia na escola ou noutras corporações, é conferido o direito de dizer o que é pu não pensamento e se o que se escreve vem da pele, da vaidade ou do fundo da alma dos que na rede se expressam. Da pele, da vaidade ou do fundo da alma se fez muita da filosofia, da literatura e até da ciência que hoje nos guia.
Tenho pena, já que indirectamente foi esse o pretexto do seu post, que não tenha participado na conversa (nem polémica foi) que o Gonçalo e eu amenamente (e já vão duas) sustentámos. Teria sido mais pessoal, e sem a mínima dúvida mais enriqucedor para todos, chegássemos a conclusões ou não, do que esta tentativa de regular o trânsito que nos leva a um beco sem saída.

Manuel S. Fonseca disse...

No comentário anterior, onde se lê "o direito de dizer o que é pu não pensamento" deve ler-se "o direito de dizer o que é OU não pensamento".

João Luís Ferreira disse...

Caro Manuel,
Talvez tenha havido um enquadramento no meu post que condicionou a sua interpretação. Primeiro o post não foi dirigido nem a si nem ao Gonlçalo. Partiu é certo de uma espécie de desafio que o Manuel lançou no fim da sua conversa com o Gonçalo e em que perguntou aos outros bloggers se não aterravam em 2008, lembra-se disso com certeza. Apenas me referi a si e ao Gonçalo como que para ganhar balanço para esse aterrar e não tanto para comentar o vosso diálogo que, aliás, me animou aqueles dias nem sempre animados do final do ano. A si conheço-o à pouco tempo mas ao Gonçalo, que conheço há mais de 20 anos, o que eu escrevi não foi tomado por uma crítica directa à vossa conversa na rede, embora tenha havido um aspecto que recuperei para o texto e que me pareceu ser o do seu elogio do dicionário versus uma certa reserva a uma inovação expressiva. Foi só isso, caro Manuel. Digo-o-lhe com estima e amizade não só por si como também pelo que escreve e até reconhecido por ser dos poucos que faz sempre um comentário ao que eu escrevo. Um abraço

Manuel S. Fonseca disse...

Caro João,
Continuo com pena de o não ter tido ao barulho no virtual comércio epistolar que troquei com o Gonçalo. Um abraço

Anónimo disse...

Caro João-Luís,
Este teu artigo ("post") é mesmo bom!
- Já o copiei para mostrar aos meus filhos.
Desculpem os outros "bloggistas" a simplicidade e a sinceridade do meu entusiasmo. Não sendo erudito, nem filósofo, gosto no entanto de pensar na vida, e julgo que sei reconhecer uma coisa boa quando a vejo.
Parabéns ao João-Luís e aos que com ele partilham
este local de troca amigável de ideias e impressões.