Elegia para um passaporte
400 milhões de europeus podem, agora, viajar livremente de Portugal à Estónia, da Finlândia à Grécia. Schengen alastrou-se a um território de 3,6 milhões de quilómetros quadrados. Liberdade e expansão que, sem rebuço ou hesitação, saúdo.
Mas tenho no bolso, encostado ao coração, o meu passaporte e não me atrevo a dar-lhe a notícia. Não é do pé para a mão que se liquida uma relação de décadas.
A primeira vez que pedi o passaporte, fui explicar, em Luanda, a um agente da PIDE as razões dessa minha vontade desvairada. Devo tê-lo comovido com tanta ânsia de cosmopolitismo. Deram-mo, como o meu pai, resignado e bondoso, me tinha já dado a emancipação para que eu, e só eu, fosse responsável pelos meus actos em Lisboa, que incluíam faltar a todas as aulas do prof. Martinez, em Direito, e fazer a ronda das livrarias para aliviar as prateleiras mais escondidas de alguns herméticos livros da colecção 10/18, a que, por mais nobres princípios que nos animassem, as nossas bolsas não chegavam. Algumas garrafas de litro de leite Vigor, pressentindo a escassez de recursos, teimavam em prestar-nos filantrópica companhia quando, após termos jogado às cartas até às 4 da manhã e outras devassidões a que vos poupo, passávamos em revista as pastelarias da Estrada de Benfica, elegante e compassada marcha a que o som atroz da bicharada do Jardim Zoológico e o cheiro, meu Deus o cheiro, emprestavam um toque de expedição à selva tropical.
Não era para isso que precisava de passaporte, como não precisei dele para, pela primeira vez, ir a Espanha a salto, do lado de lá de Vilar Formoso. Não havia no gesto, nem grande perigo, nem exaltada revolta. Era só uma coisa juvenil: passar a salto, sem passaporte, fazer compras além fronteira e voltar.
A primeira vez que me carimbaram o passaporte, na única vez que chorei ao ver uma cidade, foi em Paris, ao pôr um descuidado pezinho em França.
A primeira vez que passei a cortina de ferro e o meu passaporte teve, ali, debaixo das minhas constrangidas barbas, um despudorado affaire, dançando a valsa nas mãos do sinistro agente de uma já anémica ditadura do proletariado, foi em Budapeste, a meia dúzia de passos do Danúbio.
Olho, agora, com alguma tristeza para este meu velho e cansado companheiro. Vou mentir-lhe quando amanhã for a Roma, ou a seguir a Copenhaga. Jamais lhe direi que é agora “expendable”, à pala de um acordo feito numa parola aldeia luxemburguesa. Nem sequer o posso consolar contando-lhe as vezes em que tive gélidos arrepios só de pensar, ao dar de caras com palavrões como Alfândega, Aduana, Customs, não o ter ali, colado ao meu peito.
Mas tenho de ganhar coragem, convidá-lo para um copo, fazer com ele o luto das falecidas fronteiras, carimbos, vistos, e sobretudo, quando ele me perguntar “What About us?” recordar-lhe que apesar de tudo, “Old buddy, we’ll always have America”.
Mas tenho no bolso, encostado ao coração, o meu passaporte e não me atrevo a dar-lhe a notícia. Não é do pé para a mão que se liquida uma relação de décadas.
A primeira vez que pedi o passaporte, fui explicar, em Luanda, a um agente da PIDE as razões dessa minha vontade desvairada. Devo tê-lo comovido com tanta ânsia de cosmopolitismo. Deram-mo, como o meu pai, resignado e bondoso, me tinha já dado a emancipação para que eu, e só eu, fosse responsável pelos meus actos em Lisboa, que incluíam faltar a todas as aulas do prof. Martinez, em Direito, e fazer a ronda das livrarias para aliviar as prateleiras mais escondidas de alguns herméticos livros da colecção 10/18, a que, por mais nobres princípios que nos animassem, as nossas bolsas não chegavam. Algumas garrafas de litro de leite Vigor, pressentindo a escassez de recursos, teimavam em prestar-nos filantrópica companhia quando, após termos jogado às cartas até às 4 da manhã e outras devassidões a que vos poupo, passávamos em revista as pastelarias da Estrada de Benfica, elegante e compassada marcha a que o som atroz da bicharada do Jardim Zoológico e o cheiro, meu Deus o cheiro, emprestavam um toque de expedição à selva tropical.
Não era para isso que precisava de passaporte, como não precisei dele para, pela primeira vez, ir a Espanha a salto, do lado de lá de Vilar Formoso. Não havia no gesto, nem grande perigo, nem exaltada revolta. Era só uma coisa juvenil: passar a salto, sem passaporte, fazer compras além fronteira e voltar.
A primeira vez que me carimbaram o passaporte, na única vez que chorei ao ver uma cidade, foi em Paris, ao pôr um descuidado pezinho em França.
A primeira vez que passei a cortina de ferro e o meu passaporte teve, ali, debaixo das minhas constrangidas barbas, um despudorado affaire, dançando a valsa nas mãos do sinistro agente de uma já anémica ditadura do proletariado, foi em Budapeste, a meia dúzia de passos do Danúbio.
Olho, agora, com alguma tristeza para este meu velho e cansado companheiro. Vou mentir-lhe quando amanhã for a Roma, ou a seguir a Copenhaga. Jamais lhe direi que é agora “expendable”, à pala de um acordo feito numa parola aldeia luxemburguesa. Nem sequer o posso consolar contando-lhe as vezes em que tive gélidos arrepios só de pensar, ao dar de caras com palavrões como Alfândega, Aduana, Customs, não o ter ali, colado ao meu peito.
Mas tenho de ganhar coragem, convidá-lo para um copo, fazer com ele o luto das falecidas fronteiras, carimbos, vistos, e sobretudo, quando ele me perguntar “What About us?” recordar-lhe que apesar de tudo, “Old buddy, we’ll always have America”.
2 comentários:
Para os mais distraídos, não parece, mas por acaso o que se celebra é o nascimento de Cristo.
Bom Natal
Ora aí está uma fronteira para que nunca foi preciso passaporte.
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