Do estritamente proibido ao estritamente desejado
Este post vai gerar muitos "hate-posts"...
Portugal tem expressões curiosas que reflectem atitudes ainda mais curiosas em relação às regras. Uma delas é o "estritamente proibido". Há o proibido e o estritamente proibido… Proibido não é bem proibido. Para isso temos o estritamente proibido! Como o proibido perdeu grande parte do seu valor entre nós (já não tem efeito dissuasor) foi necessário criar o estritamente proibido. Como os Estados que criam uma nova moeda quando a anterior se desvaloriza muito. A tolerância zero é a versão contemporânea e actualizada do "estritamente proibido" (mais de acordo com as tendências actuais de marketing). Mas a nova lei do tabaco introduz uma nova categoria: é proibido mas faça como quiser.
Aviso já que as próximas linhas vão provavelmente irritar os meus amigos (ex-amigos?) tabagistas, incluindo possivelmente alguns deste deste blog. Pessoalmente, estou de acordo com a proibição de fumar em espaços fechados mas também reconheço que, na medida do possível, os tabagistas devem continuar a exercer a sua liberdade de fumar em espaços próprios. Não vou aqui recriar os argumentos pró e contra mas recuso-me a aceitar que o monopólio do discurso sobre a liberdade e tolerância pertença aos que se opõe às restrições a fumar em espaços públicos. Há aqui um conflito de liberdades e direitos que o Estado deve gerir.
No entanto, este post não tem como objectivo entrar na batalha sobre qual o melhor equilíbrio entre esses direitos e as respectivas liberdades. O que me parece é que esta lei é, nalguns pontos, mais um exemplo da nossa incapacidade de compreender que as leis actuam num contexto determinado e que ignorar isso transforma as leis em meros desejos ou mesmo hipocrisias normativas. O exemplo a que me refiro é o da liberdade (que aparentemente será dada a muitos estabelecimentos comerciais) de escolher passar a ser um espaço não fumador ou manter-se como espaço fumador (confesso que não conheço a lei em detalhe mas é isto que tenho ouvido nos media). Tal circunstância contraria um dos objectivos principais da lei (proteger os trabalhadores desse locais) mas nem é isso que quero discutir aqui. É que ela pode ser vista (para utilizar a retórica de hoje no Público de Vasco Pulido Valente) como protegendo o exercício do direito de propriedade e da liberdade de opção dos proprietários desses estabelecimentos e dos seus utilizadores. Os agentes económicos e os consumidores seriam livres de escolher entre locais para fumadores ou não fumadores. A realidade no entanto é outra: as normas jurídicas interagem com realidades sociais pré-existentes e dependem de certos comportamentos estratégicos. Esta lei corre o risco de ser sobretudo um exemplo do acto de legislar para exprimir um desejo e não realizar uma vontade. Escrevo isto e já estou a ouvir as acusações de ditadura e intolerância. Que seja claro: eu não tenho nada contra uma situação ideal em que, partindo do zero (sem uma prática social e económica pré-existente), se desse a possibilidade de optar entre um regime ou outro. No entanto, num contexto social onde a possibilidade de fumar em todos os locais é a norma social vigente (os economistas chamam a isto path-dependence) o risco de mudar essa norma não pode ser imposto aos agentes económicos. Os potenciais benefícios de imporem uma tal proibição não são suficientes para compensar o enorme risco que implica mudar a prática vigente. Se nem eu quando sofro com o fumo alheio tenho coragem de dizer a quem a meu lado fuma para parar (por receio de ser olhado e tratado como um intolerante: sanção social e não económica) porque o há-de fazer quem corre um risco económico importante. A liberdade dada é uma liberdade fictícia, ao menos para aqueles que prefeririam ter e/ou usar estabelecimentos de não fumadores. Que tal proibir o fumo nesses locais durante dois ou três anos (nem são precisos mais…) e depois sim permitir a escolha (autorizando aqueles que o pretendessem a reverter a locais abertos ao fumo). O que acham que acontecia nesse caso, em que a prática económica e social fosse a contrária? Ou isso já não seria uma forma de verdadeira liberdade? Este é o tipo de problema de acção colectiva que só pode ser resolvido através da cooperação entre todos os actores. Ou os operadores económicos se metem todos de acordo a esse respeito ou, como aconteceu nos outros Estados europeus, é o legislador que impõe essa "cooperação". Tal como está na lei a proibição de fumar é, no que respeita esses locais, apenas mais um exemplo do "é estritamente desejado" que domina a nossa legislação...
PS: O Vasco Pulido Valente apresenta mesmo assim esta lei como mais intolerante e restritiva da liberdade individual do que o as outras leis adoptadas na Europa. Seria bom que explicasse a que se refere. Isto de adaptar os factos às "necessidades" da escrita deve ter os seus limites. A nossa legislação é das mais permissivas entre as que foram adoptadas na Europa. Vasco Pulido Valente mantém intactas as suas qualidades de escrita mas tem perdido alguma da seriedade intelectual que devia ser natural num historiador.
Já agora e uma vez que estou a descarregar a minha acidez de não fumador "escondido" que tem vivido anos sujeito ao fumo público e com receio de se queixar... Um outro caso estranho nesta lei, e demonstrativo de como os direitos dos não fumadores não foram assim tão considerados, é o dos estádios de futebol, onde se poderá continuar a fumar livremente. Quem decidiu tal coisa nunca deve ter estado num estádio. Durante um ano tive um lugar de época no Sporting em que as duas pessoas à minha frente fumavam constantemente. É obvio que eu estava a apanhar esse fumo em permanência (estavam a 30 cm de mim…). No meu caso, o fumo não é apenas desagradável (e um eventual risco de saúde). É um dos factores que desencadeia as enxaquecas de que sofro à vários anos. Passei a evitar ir ao estádio (e ninguém me devolveu o que paguei pelos bilhetes). Eu não peço que proíbam de fumar nos estádios mas não seria possível ter zonas para não fumadores…
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