APL: Defender o Indefensável
Há muitos anos que Lisboa não é uma cidade simpática para tomar ar. Quando era miúdo, passar um fim-de-semana na cidade era um sinal de alguma chatice. O bom era sair para os vários sítios que havia – e de alguma forma ainda há – nos arredores. Ficar em Lisboa era sinal de ficar entretido em casa com alguma coisa, visitar amigos, também em casa. Não havia virtualmente nenhum lado para onde se pudesse ir apanhar ar. As excepções eram o Jardim Zoológico e as aulas de patins, famosas nesses anos 60, e a Feira Popular, nada de muito excitante e só alguns meses por ano. Só lá para o Restelo as coisas mudavam um bocado, mas isso também já era fora de Lisboa. Nessa altura, não sabia, mas sei hoje: tudo isto contrasta com algumas capitais europeias onde há muitos parques e jardins e aproxima Lisboa de cidades como Istambul, como se pode ver da descrição que Orhan Pamuk nos dá no seu livro com o nome da cidade.
Passei muitos anos sem precisar de Lisboa para espraiar. Nos finais dos anos 1970 e nos anos 1980, as circunstâncias mudaram e comecei a passar mais tempo livre na cidade. Um dos sítios para onde mais se ia apanhar ar eram as docas junto ao rio Tejo. Nesses anos as docas tinham um ar semi-industrial, uma vez que por todo o lado havia actividade portuária e grandes avenidas de contentores. Mas isso não era um problema, pois cultivava-se então um espírito urbano (não depressivo) de que tal cenário fazia parte. Pelas docas havia também dois (e apenas dois) restaurantes, nos clubes navais, onde se podia comer peixe e petiscos e ver algumas nesgas do rio. Eram sítios relativamente desertos e com pouca gente e isso era ainda mais uma qualidade.
Entretanto, aquilo começou a mudar. A primeira grande mudança de que me lembro foi durante o infeliz consulado de Jorge Sampaio na Câmara Municipal de Lisboa. Sampaio mandou construir dois viadutos para atravessarem a linha de comboio de Cascais, um no fim da Infante Santo e outro lá para os lados de Algés, e mandou alcatroar a avenida que acompanha o caminho-de-ferro junto ao rio. Tudo isso teve como resultado que quem se ia passear para junto do rio teve de começar a conviver com uma verdadeira auto-estrada. O que era uma rua com pouco trânsito passou a ser uma saída de Lisboa. Juntamente com a destruição do aspecto oitocentista da 24 de Julho, que tinha uma alameda central com árvores centenárias e que Sampaio mandou deitar abaixo, aquela foi a primeira intervenção de monta da CML na zona da beira-rio. Não muito feliz, convenhamos.
Paralelamente ou talvez um pouco depois, mais perto do rio começaram a aparecer outras mudanças, essas claramente positivas, se considerar que aquela zona deve ser dada ao maior número de pessoas. Primeiro, foi a doca de Santos; depois, a área junto à antiga central eléctrica. Recuperam-se armazéns que foram convertidos em restaurantes com esplanadas, refez-se uma ou outra marina, plantaram-se umas árvores e umas relvas, e criaram-se zonas para as pessoas andarem a pé e de bicicleta. Alguns anos mais tarde, foi ainda transformada a zona em frente à estação de St. Apolónia, onde está o Lux e aqueles restaurantes e lojas mais sofisticados. A zona onde está o Speakeasy (ainda existe?) também foi entretanto melhorada. Instalou-se por lá também um ministério e a misteriosa Fundação Oriente também está por aquelas bandas a instalar um museu. Estes são exemplos, entre muita outra coisa que tem sido feita junto ao rio.
Devo notar que estes elogios não têm correspondência no uso que faço destes locais, uma vez que por lá pouco ando hoje em dia.
Mas a verdade é que as alterações junto ao rio são verdadeiros sucessos populares e, pelas minhas contas rápidas, também verdadeiros sucessos financeiros. Por outras palavras, aquilo atrai gente que traz dinheiro e faz com que não seja preciso gastar dinheiro dos impostos para manter tudo aquilo com um aspecto relativamente próspero.
A Administração do Porto de Lisboa é uma instituição de “jobs for the boys” que é obviamente mal gerida, para dizer o mínimo. Tem um património gigantesco, um grande potencial de negócio, e consegue apresentar regularmente grandes défices financeiros. Para além disso, volta e meia aparecem notícias menos abonatórias sobre a forma como os corpos administrativos gerem os seus próprios cargos. Todavia, a verdade é que foi a APL que esteve por trás das transformações que tiveram lugar, junto ao rio, nos últimos 15 ou 20 anos.
E a Câmara Municipal de Lisboa o que fez para dar mais espaço ao ar livre a quem vive em Lisboa? Há, claro, algumas mudanças, mas não para quem vive no centro da cidade. Fizeram-se uns parques para os lados da Expo (uma outra revolução urbana bem sucedida com que a Câmara não teve nada a ver), um outro por cima da Av. do Aeroporto, mas que entretanto foi tomado por um festival de rock. Mais no centro da cidade, de novo só me lembro de um parque junto a Belém e o jardim por cima do Parque Eduardo VII que ninguém frequenta por ser inóspito.
Apesar de mal gerida, a Administração do Porto de Lisboa ganha numa comparação com a Câmara Municipal de Lisboa. O actual presidente da Câmara devia olhar com maior atenção para o historial da entidade que preside antes de criticar os outros organismos.
Imagine-se o que seria se o rio tivesse sido gerido pela Câmara de Lisboa nestas últimas décadas.
Tudo isto não significa que se deixe tudo como está. Mas as mudanças devem ser feitas com cuidado. Seria bom que a Câmara não passasse a ter autoridade absoluta sobre a frente do rio e que os seus poderes fossem limitados por uma legislação apertada. Um desiderato porventura difícil de conseguir, dada a proximidade do actual presidente da Câmara ao Governo.
Uma última nota. Há comentadores que por vezes pecam por excesso quando se trata da Câmara de Lisboa. Não se pode criticar o poder autárquico de todo o País e, na disputa sobre o rio Tejo, ser irredutível defensor da Câmara contra a APL. É difícil provar que a Câmara teria feito um melhor trabalho nestes últimos 15 ou 20 anos. Já não é difícil mostrar que, em matéria de dar espaço ao lazer popular, a APL bate aos pontos a CML. Num campeonato de misérias, claro.
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