terça-feira, 31 de julho de 2007

Pensar a ideologia do fazer

Os posts recentes do Alexandre (sobre Sarkozy, que tem defendido uma espécie de primado da acção) e do Nuno Lobo Antunes (sobre ensinar e a relação entre pensar e fazer) levam-me a esta reflexão sobre a crescente oposição entre pensar e fazer. Há hoje na Europa uma crescente ideologia do fazer. Em grande medida é uma reacção a uma percepção generalizada de que pensamos demais e agimos pouco. Que somos uma sociedade paralisada. Que o que é necessário é uma cultura da acção e um conhecimento assente no fazer.

Acontece que agir sem pensar é impensável ou nunca deu bons resultados (como lembrou Alan Filkenkraut uma das mentes mais livres e notáveis do actual espaço público francês). É verdade que França e Portugal partilham uma certa cultura da inércia (não é por acaso que em Portugal frequentemente se associa a inércia com a prudência e a acção com a inconsciência…). No entanto, a instauração de um eventual primado da acção é um absurdo gerador de equívocos. Um bom exemplo dos inúmeros equívocos que podem resultar de uma filosofia deste tipo é a crescente importância que se atribui à ciência aplicada por comparação com a ciência pura (e algumas ciências sociais). A "tese" é que a ciência aplicada é "produtiva": traduz-se em resultados concretos, produz riqueza, dá sentido à investigação e permite relacioná-la com o mundo real (em particular, com o mundo empresarial). Ao contrário a ciência pura (e frequentemente, grande parte das ciências sociais) produziriam um conhecimento abstracto, se não mesmo esotérico, e desprovido de um verdadeiro valor acrescentado para a comunidade. No entanto, sem Newton não teriam havido várias das invenções que hoje utilizamos… As ciência puras são as infra-estruturas do conhecimento: são elas que fornecem as estradas e os mapas para a ciência aplicada chegar a algum lado. Mas, acima de tudo, com as ciências sociais, produzem a massa crítica de base e formam recursos humanos. Neste sentido, e ao contrário do que por vezes se advoga, é bem provável que faça mais sentido que o Estado financie sobretudo investigação pura ou na área das ciências sociais. Na verdade, o mais natural é que a investigação aplicada, com uma hipotética tradução imediata em produtos de mercado, esteja sujeita ao juízo desse mesmo mercado e consiga o seu financiamento no mundo empresarial (o Estado poderia, quando muito, ajudar ao contacto entre estes dois mundos). Ao contrário, a investigação em ciências puras e nalgumas áreas das ciências sociais, pode ser vista como um bem público: de que todos beneficiam mas de "acesso livre" sem que possa, por essa razão, ter um valor de mercado e financiar-se neste. O financiamento pelo Estado deste tipo de ciência corresponderia assim ao financiamento de infra-estruturas públicas. Na verdade, e talvez paradoxalmente, essa devia ser a prioridade da política científica do Estado. A outra investigação deveria assentar no mercado.
É por isso que, se bem que concordando com grande parte do post anterior do Nuno Lobo Antunes, não posso, ao contrário dele, partilhar do aforismo de Bernard Shaw de que "quem sabe faz, quem não sabe ensina". Pelo contrário, a incapacidade de reflexão crítica e autónoma que o Nuno bem nota é sobretudo consequência de não se saber pensar nem ensinar a pensar. Neste sentido é, igualmente, importante não esgotar o pensamento em metafísica… (o nosso problema talvez seja sobretudo esse: a ausência de uma cultura analítica que promova um espírito mais crítico e autónomo). Há certas formas de pensamento que limitam o pensamento futuro.
A exaltação de uma ideologia do fazer contraposta à ideia de pensar apenas agravará a paralisia da nossa sociedade. A inércia portuguesa, se bem que suportada na cobardia decorrente do medo de errar, é consequência, em primeiro lugar, de não se pensar ou se pensar mal. É que a única forma de agir sem pensar é repetir…
Disclosure: este bloguista é, tradicionalmente, um homem das ciências sociais (temporariamente emprestado ao mundo "prático").

5 comentários:

Unknown disse...

é claro que o 'fazer' dá nas vistas (geralmente) e que o 'pensar' (construtivo) precisa de estrutura mental; mas as ciências puras têm caído em desgraça (passe o exagero) porque podem ser pasto de enormes vacuidades -- e não há pachorra para isso!

Nuno Lobo Antunes disse...

Caro Miguel:
A propósito de equívocos:
1) Longe de mim assumir a primazia da ciência aplicada sobre a "pura", (mas será que o disse?).
2) Longe de mim assumir a primazia da acção sobre o pensamento, (mas será que o disse?).
3) Longe de mim assumir que a citação é mais do que uma caricatura, que como todas as caricaturas acentua os traços para transmitir uma ideia, (mas não será óbvio?).
Qualquer dos pontos acima é de tal forma evidente, que não merece discussão, e pensaria, pelos vistos erradamente, que o Miguel me faria a justiça de, "a priori", reconhecer que era provável que o soubesse..
Dito isto:
A minha experiência é de que o Ensino, (sublinho Ensino), em Portugal, se faz em geral vendo, sentado ao lado, e não "hands on",como é necessário que o seja. Nos EUA, ninguem pergunta, (quando se é médico), onde aprendeste?, mas sim, onde te treinaste? Esta diferença é fundamental, e faz com que,por exemplo, o curso de Medicina e o internato, sejam muito mais curtos, porque efectivamente se adquire experiência, isto é, se pensa, se decide, e se assina por baixo, assumindo a responsabilidade por escrito dos dois passos anteriores. O lema é: "See one, do one, teach one". Na Medicina, em Portugal, a passagem do ver para o fazer por vezes demora quase uma década. As pessoas jovens são tratadas como imbecis, incapazes de terem a "experiência" necessária para emitirem uma opinião, mas, sobretudo, para tomarem uma resolução. O ensino é sobretudo através de manuais, livresco. O que é triste, é que tal parece ser conveniente, muitas vezes, para as duas partes. Só assim se explica que o único critério para entrada em Medicina seja a média do Liceu, sem que se tenha em conta, minimamente o carácter, personalidade, interesses do candidato. De resto, mesmo a ciência "pura" ou "básica" necessita de treino "prático", no mínimo tão exigente quanto a da ciência aplicada. Ou não será assim?
Um abraço.

Alexandre Brandão da Veiga disse...

Não posso concordar mais com o que dizes Miguel. Mas gostava de salientar alguns aspectos:
1) O desprezo pela teoria é uma constante da cultura portuguesa e isso diferencia-a da francesa e aproxima-a mais das anglo-saxónicas (o corte "latino"/"anglo-saxónico" muitas vezes é injusto). Isto com o paradoxo de nem termos tido o pragmatismo que lhe reconhecer o valor prático, ao contrário dos anglo-americanos.
2) A ciência aplicada também carece de alguma protecção do Esatdo. O exemplo americano do NSA mostra que um Estado se pode dedicar à espionagem industrial contra os seus "aliados". A Europa não pode ficar despida nessa matéria.
3) No que respeita a Sarkozy não acho que haja uma primazia do fazer, Bem pelo contrário, o que tentei demonstar, dando exemplos, é que existe uma teoria, e um debate teórico, por detrás da aparente primazia da acção. Por isso a tal deputada comunista percebeu que se tratava de uma derrota ideológica, mais que política.

Inez Dentinho disse...

Esta dualidade entre o pensar e o fazer torna-se preversa no registo político/eleitoral. No nosso País, até o PS ter anuído à revisão constitucional de 89 que permite as privatizações acima dos 50%, o voto dependia de propostas ideológicas mais ou menos bem vendidas.
Passou-se depois, gradualmente, para uma fase em que o voto resulta de promessas de resultados concretos. Ex: 150 mil postos de trabalho na versão Sócrates.
Dir-se-á que o «fazer» venceu o «pensar».
Antes disso, Mário Soares ganhou as Legislativas em 1975, 1976 e 1983 sem numerar uma única promessa e proclamando um socialismo que arrumara sozinho na gaveta antes de chegar a Santa Apolónia.
Cavaco fora promissor sem prometer ideias ou dividendos. Contaria depois o número de metros de alcatrão inaugurando a política dos resultados.
Guterres ainda deambulou no cruzamento entre o socialismo e a doutrina social da Igreja, distribuindo os créditos anteriores pelo Rendimento Mínimo Garantido.
Mas Durão já vai pautar toda a política pelo imperativo das décimas de Ferreira Leite correndo para Bruxelas no dia do desaire eleitoral das europeias a 13 de Junho de 2004. Santana tenta os Oceanos, o fim das SCUT e o crescimento económico mas não tem tempo para décimas nem ideologias e Sócrates reduz a política ao balancete mensal. Mais atento às bermas e à velocidade do que ao destino.
Para onde vamos é uma decisão que preside à escolha dos caminhos que, já sabemos, se fazem caminhando.

Anónimo disse...

Pensar e fazer, ou sobre o pensar para fazer…!

Enquanto em Portugal o governo se entretém a fazer e desfazer, ora hoje fechando e amanhã reabrindo, ontem para a Ota em força daqui a meses logo se verá o Alcochete e o Portela só ou mais um, lá pelos saxónicos mudam o primeiro-ministro e as decisões são em catadupa. A grande maioria delas pensadas com tempo e madureza e concretizadas de imediato e sem solavancos e arrecuas. O nosso governo nem sabe se quer exames no ensino e se os resultados das avaliações dos alunos devem efectivamente ser considerados para gerir estrategicamente a educação das próximas gerações de portugueses que serão os responsáveis de amanhã. O défice é agora o único objectivo de que se conhece a meta real e o prazo constritivo para a sua concretização. A modernidade, melhor a modernização, seja lá o que isso possa ser em cada domínio, é a palavra-chave do primeiro-ministro. E a tecnologia serve para tudo, é o faz tudo, o “constructo” da salvação. Estratégia com metas na educação e nos resultados educativos, nos diversos sectores económicos, para captação de investimentos nacionais e estrangeiros que gerem empregos para os nossos melhores jovens é coisa que nem se fala. Enquanto no tal mundo anglo-saxónico, no Reino de Sua majestade, o governo recentemente empossado e que já vem com obra feita de quase dez anos, sucessivamente exibida e reportada à sociedade, já está envolvido num exercício global de pensar o Reino para daqui a dez anos. E não o está a fazer longe da sociedade, está a fazê-lo na frente dos cidadãos, apenas à distância de um clique de rato e de um ecrã de computador. Porque aqui a tecnologia é – como diz Manuel Castells – um instrumento poderoso ao serviço das políticas e das mudanças, e um promotor enorme do pensar e do fazer.