Peles de carneiro, bolas de Berlim e regulação
Um dos últimos gritos da moda (ouvi dizer) é juntar um grupo de amigos e alugar um riad em Marrakech, de preferência no Inverno. Há uns tempos fui levado num empreendimento desses. Um riad é uma moradia no centro da cidade, no meio da zona mais popular e os que se alugam foram restaurados por corajosos empreendedores nacionais ou estrangeiros, oferecendo todos os confortos que se pode imaginar. A moda justifica-se: trata-se de passar uma temporada num meio exótico, com todas as comodidades e serventias. Aqueles que têm consciência social, a “esquerda caviar”, também se podem sentir bem, pois o restauro apurado das moradias em causa e o recebimento dos hóspedes, com todo o trabalho que envolve, tem um impacto positivo óbvio na cidade no curto prazo e, para quem quiser ver, também no longo prazo.
Para além do pátio interior, para onde dão as salas e os quartos, os riad caracterizam-se por terem agradáveis terraços, com tendas, onde se toma de manhã o pequeno-almoço e ao fim da tarde a ubíqua cerveja. Estes pátios mostram uma vista que tem como mais interessante o facto de podermos imaginar a velha cidade a funcionar, pois cada moradia restaurada está rodeada de dezenas de casas antigas onde vivem e trabalham as famílias da terra. Uma das coisas que se vê são peles de carneiro a secar (pelo menos no Inverno). Podemos então imaginar essas famílias a comprarem os animais no mercado, a trazerem-nos vivos para casa, onde são mortos e aproveitados até ao tutano e às peles. Isto vai acabar um dia. Com o desenvolvimento económico, aparecerá uma entidade que regulará estas actividades e obrigará a fazer tudo como se faz hoje em dia nas cidades europeias. O turista perde uma parte do cenário, mas seguramente haverá muita gente satisfeita, sobretudo as gerações mais novas que se devem estar tanto nas tintas para esta tradição como eu estou para a tradição de se verem perus no Campo Grande para serem comprados pelas famílias lisboetas no Natal.
Tudo isto vem a propósito de uma crónica de Vasco Pulido Valente – o meu cronista preferido e de longe – há uns tempos sobre o fim das bolas de Berlim da D. Gertrudes e a acção da entidade dos alimentos portuguesa que anda a multar a torto e a direito. Se este autor fosse marroquino podia escrever o mesmo sobre as peles de carneiro, seguramente. (Bem, não tão seguramente assim. Se o autor fosse marroquino andaria por lá a conspirar para tornar o regime mais democrático – como fez por cá há uns anos). E se o autor fosse vivo há 150 ou 120 anos, por cá, podia também escrever o mesmo contra a adopção do sistema métrico decimal e contra a obrigatoriedade de se matarem os animais em matadouros.
Estas críticas à regulação mínima são desajustadas porque não têm em consideração que há coisas que só se alteram se houver uma instituição que obrigue a que todos os agentes de um determinado mercado actuem no mesmo sentido.
Estou a recordar-me do cenário do terraço do riad e da crónica de Pulido Valente porque estou neste momento a passar férias num sítio, perto das praias alentejanas, cuja vila mais próxima não tem um único restaurante de jeito. No largo principal existem quatro restaurantes, cada um pior do que o outro do ponto de vista da higiene, da apresentação e da culinária (há sempre, claro, aquele “peixinho muito bom”…). Os donos desses restaurantes são das pessoas mais ricas da terra (sei isso) e teriam todas as condições para melhorarem o serviço. Mas não o fazem porque o mercado não gera a força suficiente para introduzir mudança. Podia pensar-se que um deles avançaria, fornecendo melhor serviço, com vista a aumentar os preços e os lucros, atraindo assim mais clientela, roubada aos concorrentes que, em consequência, teriam também de introduzir melhorias. Mas acontece que o mercado não pede isso porque não há um fluxo suficiente de forasteiros para alimentar esse passo isolado. Assim, quem avançasse para a melhoria seria prejudicado uma vez que as pessoas do local continuariam a preferir os velhos restaurantes a preços mais baixos.
A acção de uma entidade reguladora junto destes quatro restaurantes teria como principal consequência que todos eles melhorariam os serviços, mantendo os preços, devolvendo aos consumidores parte dos lucros (do “excedente”). Com o passar do tempo, o mercado seria alargado, uma vez que os lisboetas como eu passariam a frequentar os ditos restaurantes, restabelecendo-se facilmente os lucros totais. Sei que esta perspectiva é um pouco caseira ou mesmo umbilical, mas ela traduz uma fé enraizada que tenho no mercado e nas instituições que as civilizações mais avançadas foram encontrando para os regular. Portugal está a três quartos do caminho entre Marrocos e a Suiça e vamos ter de ter muita paciência para as transformações que ainda vêm aí em matéria de regulação.
Para o fim o mais difícil. A regulação só funciona se for impingida no tempo certo. Se for demasiadamente cedo não é eficaz e isso por uma razão que é de que os reguladores ainda não tiveram os sinais suficientes (do mercado) sobre a forma de agir. Dito isto, aposto que o Alentejo já aguentava uma visitinha da famigerada entidade a muitos dos seus restaurantes.
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