Certeiras impertinências
Há expressões que se tornam proverbiais. Mas o que é menos notado é que muitas delas são compostas por um elemento impertinente, irrelevante.
No Velho do Restelo releva apenas o facto de ser velho, porque a sua atitude será típico de uma determinada idade da vida. Mas nada prova que seja na época de Camões, seja posteriormente os habitantes do Restelo fossem particularmente menos crentes na aventura e no risco.
Platão diz na República, pela boca de Sócrates, que dele (do que viu a luz fora da caverna) “se rirão, mas não a s servas trácias”. A referência é clássica. Conta-se que as servas trácias se tinham ruído com o facto de Tales de Mileto ter caído por estar demasiado concentrado a pensar em temas celestes. Quando Platão diz que se riem do homem que viu a luz, quer dizer que quem se rirá não terá o estatuto social das servas, mas no fundo é tão ignorante quanto elas. Se a trácia não era conhecida pelo seu grande desenvolvimento cultural, a verdade é que “trácias” aqui em nada acrescenta.
O êxito destas impertinências decorre obviamente do prestígio dos seus autores e das obras onde estão integradas. E por isso a importância ganha sabor a autoridade. A impertinência isolada seria puro disparate.
Para que uma impertinência faça sentido é preciso estar integrada numa massa tão rica dele que até o que destoa é santificado.
Ao contrário do espírito da época que idolatra a impertinência e o desconexo por si mesmo, há aqui um “apesar” de” que tem sempre de ser tido em conta. Não um “por causa de”.
Depois... Depois é certo que a obra em que estão integradas as ditas impertinências é tão rica que elas mesmas participam dessa riqueza – e para ela contribuem.
Lição a retirar: a impertinência é privilégio de génio. O cidadão comum melhor obra fará se não se arriscar além dos seus limites. Só quem incarna a pertinência a pode violar. Uma dissonância em Rostropovich pode ter charme. No vulgar tem apenas um nome: fífia. E no mesmo comum mais grave estigma: má-criação.
Alexandre Brandão da Veiga
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