sexta-feira, 6 de julho de 2007

O gratuito

Um padre europeu, missionário na China, e nosso contemporâneo, explicou como era difícil transmitir aos chineses a ideia de gratuito. As palavras que o chinês tem para a coisa significam pechisbeque, de má qualidade, sem valor. Por isso explicar que o amor de Deus é gratuito se torna um quebra-cabeças na China. Embora isto não impeça que hoje em dia cresçam as conversões ao cristianismo na China.

Tem no entanto de se reconhecer que é embaraçoso dizer em chinês algo como “dom gratuito de Deus” para falar da experiência de Cristo quando isso tem a ressonância de “dom sem valor”, ou que o amor de Deus é gratuito, ou seja, pechisbeque.

Na cultura europeia as palavras associadas ao gratuito são no entanto cheias de conotações positivas. “Doros” e “karis” são dádivas oferecidas aos deuses, e dão palavras nobres como Teodoro e carisma. Nome de imperador e de qualidade positiva. Nas línguas latinas “datus”, “gratia” são palavras com ressonância religiosa e imperial. Adeodato é nome aristocrático (como Teodoro, o seu correlato grego), e a graça é prerrogativa imperial. A graça é o que está para além do Direito, um traço de privilégio divino do imperador. A graça é qualidade do elegante, do que tem beleza.

É evidente que nada existe sem o risco da ambiguidade. Timeo graecos dona ferentes. Os presentes podem ser envenenados. Gift em inglês é presente, mas veneno em alemão. Os nossos antepassados não eram ingénuos. Sabem que o que é dado gratuitamente nos pode suscitar cautela. Quando a esmola é grande o pobre desconfia. Mas como tudo o que é superior nos suscita reserva. Seja vindo dos deuses, seja dos imperadores. A dádiva gera sempre uma ligação e tem consequências. Essa ligação e essas consequências podem comprometer-nos.

Mas o que não deixa de ser verdade é que a dádiva gratuita tem estatuto de nobreza no espaço europeu que não se encontra no mesmo grau noutras culturas. Mesmo o zakat muçulmano tem origem notoriamente cristã, e nesse aspecto não foge à regra.

No mundo em que vivemos, o lugar comum é o de que as coisas todas se encontram comercializadas. Tudo pode ser objecto de comércio. A segunda é verdadeira talvez. Não a primeira. A Internet é bom exemplo disso. Nunca tanta informação foi distribuída de forma gratuita. Os donativos e o evergetismo seja com os tsunamis, seja com actividades sociais e religiosas, são parte substantiva da actividade social e económica dos nossos dias.

Esta necessidade do gratuito pode ser vista em muitas perspectivas. É evidente que muitas vezes tem motivações comerciais e económicas, outras políticas. Não sejamos ingénuos. Mas seria empobrecedor ver apenas essas motivações. Existe uma misteriosa necessidade no ser humano que é a de dar. Numa época que se vê como lúcida apenas quando encontra o motivo torpe, rasteiro, seja ele primevo ou económico, esta necessidade tem de ser reduzida ao instinto, à necessidade de poder, de negociação ou económica.

Uma sociedade talvez mais lúcida encontraria nesta necessidade algo do centro do ser humano. A atitude ética de uma classe inteira foi feita com base nesta força: a nobreza. Uma religião inteira tem aí o seu centro: o cristianismo. Parecem-me mais lúcidas que a visão mercantil. Porque só se vê a necessidade de descartar sistematicamente como ingénuo e secundário (contradição se a há) o que tem efectivo poder. O actual paradigma de lucidez é a do feirante e a do merceeiro. E quando vemos alguém apelar ao seu realismo temos sempre de nos precaver não vá o cheiro da chita ou da cebola invadir-nos.



Alexandre Brandão da Veiga

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