sábado, 16 de junho de 2007

Liberalismo e Arquitectura (3)

Entregues a uma dimensão em que o fio que une os interesses individuais e os interesses comuns parece reduzir-se ao mínimo, perdido um ideal comum para os povos, perdida a posição individual num contexto convivencial, os indivíduos escondem-se na expressão de uma vontade própria, a expressão da sua interioridade, que não pretendem discutir nem têm condições de comunicar.

Os arquitectos, espelhos do seu tempo, parecem hoje distantes do concreto existencial em que a vida das comunidades, das cidades ou dos povos se desenvolve. Filhos do internacionalismo estilístico e de uma tecnologia sem fronteiras, actuam sem referência ao que, antes, era fonte e expressão de harmonia. Actuam, sobretudo, em nome de si próprios. É certo, que são sedutores e surpreendentes, pelo menos num primeiro olhar, mas sente-se que cada vez mais produzem todo um tipo de bizarrias que, verdadeiramente, só interessam a si próprios (e, talvez a presidentes de câmaras ou de repúblicas), as quais acabam por ser anuladas, no palco que são as cidades, por outras bizarrias equivalentes. Mas entre bizarrias e voluntarismo, vai-se destruindo e matando o espaço público como espaço de expressão não da personalidade de um arquitecto mas da singularidade de uma comunidade, de um povo ou de uma história, de uma cultura ou de uma civilização.
Percebe-se muito bem, que tanto o direito como a arquitectura lidam com este difícil mas indispensável equilíbrio entre a necessidade de interpretar o que é comum e deixar a liberdade de actuar no que não ponha em causa o compromisso que está na origem da vida em comunidade e que é a garantia da sua perduração. O que é errado é chamar liberalismo a todo o tipo de bagunça que a falta de lei e da sua aplicação vai semeando nas sociedades contemporâneas. O liberalismo não é apenas uma corrente económica, é o sistema da liberdade económica e política (e, por isso, do direito), é a aceitação de que os melhores resultados saem da possibilidade de cada homem agir segundo as suas potencialidades, interesses e talentos, sem que haja qualquer forma de o limitar nesse movimento em nome de proselitismos ou verdades efémeras. Pressupõe que essa acção, simultaneamente, reconheça os interesses e as expectativas do outro: o saber do direito e o saber da arquitectura formaram-se nesse reconhecimento.
Pode o mundo, não perceber os limites e o interesse deste compromisso, mas confundir o livre-arbítrio infinito e a liberdade é um erro que a humanidade já devia ter superado. Porém, perante o cenário em que a arquitectura se exerce como prática dos arquitectos, há dificuldades metodológicas que se lhes apresentam diariamente. O entendimento vulgar de que a arquitectura exige espectacularidade, leva a que aquela ideia de continuidade que sempre existiu nas cidades se perca e todos os edifícios requeiram excepcionalidade, visibilidade e diferenciação. Os arquitectos que se distinguem no panorama internacional são estrelas que pairam acima dos comuns mortais e que lhes impõem obras bizarras que o gosto frágil vai aceitando, incorporando e, por fim, exigindo. Vemos aqui e ali resistências, outras práticas, mas sentimos que a pressão do exemplo do star system (e do circo mediático que o valida) a educar as novas gerações que um dia pensarão a arquitectura como uma arte plástica ou uma arte de espectáculo, vai dissolvendo a substância disciplinar da arquitectura. Veremos, ou antes, já vamos vendo, as cidades a indiferenciarem-se porque ninguém as pensa como o lugar onde o homem encontra a proporção da relação da sua subjectividade com o que universalmente faz dos homens seres afins. Parecendo favorecer o individualismo está a matá-lo. Como vai matando as cidades e a Liberdade.

4 comentários:

Madalena Lello disse...

Que tema interessante!
Julgo que a construção, de novos museus por todo o mundo serve de exemplo quando refere “o entendimento vulgar de que a arquitectura exige espectacularidade”.
O rápidocrescimento das colecções de arte em todo o mundo tem exigido a construção de novos museus ou extensões de museus antigos. Nos E.U.A, cidades pequenas como Kansas City (443 000), ou Millwaukee, chamam arquitectos de renome, Santiago Calatrava, Zaha Hadid...para aí construirem novos museus. Mesmo com excelentes colecções de arte, estas cidades, precisam de nomes sonantes da arquitectura. Não acontece só na américa, no Japão, desde o boom económico dos anos 80 que novos museus proliferam por todo o lado. O Miho Museum terminado em 97 por I.M.Pei, tem peças extraordinárias da antiguidade egípcia, persa, japonesa...contudo só se fala em Pei e no edifício que por sinal é excelente. Mais uma vez com uma colecção excelente, parece que a visibilidade só é possível se ao museu se associar um grande arquitecto. Mas esta é a linha de tendência em todo o lado. Porquê?
Vou ao Guggenheim de Bilbao para ver essa “obra bizarra que o gosto frágil vai aceitando...” ou vou ao Guggenheim para ver Anselm Kiefer que aí está em exposição?
Quando o renovado MoMA abriu as suas portas no dia 20 de Novembro de 2004, as extensas bichas eram para ver o trabalho de Yoshio Taniguchi, ou as obras da colecção?
Para Taniguchi trabalhar com os comissários do MoMA foi indispensável, porque acomodar da melhor forma possível escala e tipo das obras e lhes dar a melhor visibilidade, foi a sua preocupação principal. A crítica só teve olhos para o novo edifício. Numa entrevista que li na altura, Taniguchi sentia que falhara, o público olhava para a sua obra e não para as obras de arte em exposição, falhara o seu objectivo.
Porquê? Porque se tornou a obra do arquitecto superior a qualquer outra forma de arte?
Não admira pois que cada vez mais os arquitectos “actuam, sobretudo, em nome de si próprios”.
E não estamos nós todos a contribuir para essas “bizarrias”dos arquitectos?
E bizarra é talvez a explicação que encontro para esta linha de tendência que teve origem com Hilla Rebay conselheira de Solomon R. Guggenheim. Em 1943, Rebay aconselhou Frank Lloyd Wright, o museu só poderia ser construido por ele. Depois de muitos soluços e peripécias, o Guggenheim Museum na 5ª avenida abre as suas portas em 59. Quando se olha hoje para este monumento, pensa-se primeiro no arquitecto Lloyd Wright depois no que lá está dentro. Em 66 é a vez de Marcel Breuer, com o Whitney Museum, amanhã é Jean Nouvel no Abou Dhabi nos Emirados Arábes...a moda pegou com Hilla Rebay e continua, e enquanto só olharmos para a arquitectura, os arquitectos “cada vez mais produzem todo um tipo de bizarrias que, verdadeiramente só interessam a si próprios”.

Anónimo disse...

Desde que essas "bizarrias" não comprometam a função destinada às respectivas construções, tudo bem!

Agora veja-se o caso, este sim bizarro e incompetente, aqui em Lisboa, da cobertura exterior do Metro, junto à Lusa no C. Colombo ( que faz meter àgua, em vez de proteger da chuva).

Lourenço Cordeiro disse...

Não resisto a uma nota sobre o comentário da madalena lello. Ora aqui ficam as minhas reacções a três dos museus que referiu:

Bilbao - Acho que o edifício cumpre na perfeição a sua função: aquilo é tão mau que só dá vontade de dar atenção às exposições (Rothko, por exemplo, no meu caso).

MoMA - Concordo. Confesso que preferi o edifício à colecção. Mas talvez isso se deva à pobreza da colecção.

Guggenheim - Ai aquilo tinha lá obras expostas? Não dei por nada.

Elenara disse...

Olá pessoal!

A arquitetura de formas bizzaras está bem disseminada. Algumas remetem a formas conhecidas, enquanto outras são "apenas" espetaculares.

No "Aberracionódromo" do SkyscraperCity (19 páginas) podem ser vistos prédios com a forma de elefante; baleia; crocodilo; dragão; cesta de vime; bomba de gasolina; navio; três mandarins; moeda de I-Ching e ogiva nuclear. Veja-se ainda os "desconstruídos" e um outro com varandas de vidro que simulam espinhos... Fotos e localização estão aqui: http://66.249.128.84/showthread.php?s=e3bc5177d42de327ce9e17cdaec62339&t=361479

Se o link ficar incompleto neste post, basta procurar por Aberracionódromo SkyscraperCity no Google.

Abraços,

Elenara