Direito à vida, direito à morte
Num comentário anterior, relativo a um texto do Pedro Norton, exprimi a minha concordância com as suas posições liberais de princípio: tal como o direito à vida e à procura da vida com dignidade é inalienável, também o direito à (própria) morte e à dignidade na morte deve ser um direito, e um direito inalienável.
Citei como exemplo o "Bourbaki Gambit" do Carl Djerassi: um romance científico em torno de uma colaboração científica com vista a encontrar uma cura para o cancro. Termina com um caso de amor entre um casal entradote, o cientista sénior e a financiadora do projecto, que oferecem um ao outro a seguinte presente de casamento: uma caixa contendo veneno de acção imediata, compromentendo-se cada um a administrar o conteúdo ao outro no caso de este contrair cancro.
A ideia romanticamente atrai-me, e compreendo a atitude. No entanto, como diz a Sofia a vida não é a preto e branco, sim e não. Nem sequer a tons de cinzento: há cores. Não há uma moeda com duas faces: há toda uma paleta de possibilidades.
O post do Manuel Cunha e Sá lembrou muito bem a questão de um necessário enquadramento legal, que, à parte a recente experiência suíça, tanto quanto sei só existiu num único país: a Alemanha nazi. E esse facto não pode ser liminarmente ignorado. Convém recordar os antecendentes.
As ideias de "limpeza dos deficientes" já andavam no ar desde antes de Hitler. Contudo, o poder absoluto deste permitiu, precisamente, a consideração da eutanásia como missão do Estado. Começando com crianças deficientes, com argumentos pseudo-humanitários segundo os quais "tal como não é lícito matar, é cem vezes mais errado desafiar a natureza mantendo vivo o que não foi feito para viver", deu-se início aos programas de eutanásia infantil.
Por volta de 1940, esta acção foi estendida aos hospícios e hospitais. Tomou o nome de código de "Aktion T-4", porque os escritórios se situavam em Tiergarten nº4. Quando foi a operação foi encerrada, em Agosto de 1941, calcula-se que cerca de 90.000 pessoas tenham sucumbido a estes programas de eutanásia.
Foi no âmbito da Aktion T-4 que foram desenvolvidos alguns métodos de extermínio em massa que mais tarde foram discutidos na infame reunião de Wannsee e utilizados nos campos de extermínio do Holocausto, de Auschwitz a Treblinka: os camiões de gás, por exemplo, e (por estes mostrarem a sua inadequação às dimensões do extermínio) as suas sucessoras câmaras de gás.
Na verdade, e por arrepiante que pareça, pode traçar-se (e isso está feito pelos historiadores, como por exemplo Ian Kershaw) uma linha de continuidade lógica ininterrupta e com um sentido histórico de quase inevitabilidade entre os programas iniciais de eutanásia para crianças deficientes e, seis anos mais tarde, as câmaras de gás e crematórios de Auschwitz.
É claro que a insanidade brutal da ditadura nazi não pode ser tomada como exemplo para nada. No entanto, o facto de esta ser a única experiência moderna neste sentido mostra bem como são muitíssimo delicadas e frágeis as fronteiras éticas num ponto tão sensível como este, em que não há preto e branco.
O Manuel Cunha e Sá colocou brilhantemente as questões médicas. Mas pensemos no seguinte: se numa sociedade essencialmente pacificada, evoluída e integrada num grande bloco político e social como Portugal a discussão sobre o aborto foi tudo menos pacífica, imagine-se o que poderia significar, hoje, a legalização da eutanásia numa república das bananas nas mãos de um ditador sem escrúpulos.
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