domingo, 3 de junho de 2007

Da radicalidade da fé

Perguntou, há muitos anos, o então Cardeal Ratzinger: «como se explica que o tema aparentemente mais supérfluo e inútil na Terra continue a ser o mais angustiante da história?»
Procurar a resposta ajuda a perceber a inevitável frustração daqueles que tentam encontrar certezas no conforto das verdades científicas (aliás, nesse sentido, a circunstância de poderem ser apenas pseudo-científicas aumenta o logro, mas nada muda de essencial).
A fé vive da ameaça da incerteza. A fé é insegura. A fé é, no fundo, vontade de crer. No reverso, a ausência de fé é, também ela, incerteza, insegurança e vontade de não crer. Aquele que não acredita enfrenta, necessariamente, a tentação da possibilidade. «Apesar de tudo, talvez seja verdade». Do talvez, ninguém foge. Crentes, agnósticos e ateus partilham a dimensão da dúvida.
Como também disse Ratzinger, «quem quiser fugir das incertezas da fé terá de suportar as incertezas da ausência de fé e nunca poderá dizer com certeza definitiva que a fé não é a verdade. Só na recusa da fé se revela a sua irrecusabilidade».
Ora, a fé dos cristãos – ao contrário da fé de outros, reconheça-se – radica no invisível, no intangível. Deus não se vê, não se ouve, não se toca. Mas, através da fé, os cristãos sabem que Deus existe. A fé dos cristãos faz com que o invisível se torne visível e o intangível se torne tangível, fornecendo uma chave de leitura para o sentido da vida e do mundo.
Contudo, em nenhum momento, a fé deixa de se reconhecer como fé. Com todos os riscos aí implicados, já que a realidade e o fundamento tidos por verdadeiros assentam, afinal, em bases que não se vêem (e cuja prova racional sempre andou, mesmo quando estava mais em voga do que hoje, longíssimo das fórmulas matemáticas ou das experiências laboratoriais).
Um crente sabe que é assim. Um não crente também sabe que é assim. Por isso, exercícios cientistas (ou pseudo-cientistas) só podem convocar os que não percebem a medida da irredutibilidade entre as diferentes explicações. E esses, os que não percebem, são sempre presa fácil para sensacionalismos desonestos.

7 comentários:

Anónimo disse...

Gostei imenso do seu texto. Ele trouxe-me à presença uma velha fórmula mais ou menos panteísta que em tempos usei (uso?) para explicar a minha fé: «Não acredito em Deus na razão directa de que também não acredito na evidência do amor. Como não acredito numa árvore ou num cão. Eles estão ali, dispensando perfeitamente a minha crença ou descrença.

MiguelT disse...

«Não acredito em Deus na razão directa de que também não acredito na evidência do amor. Como não acredito numa árvore ou num cão."

Bem, há aqui uma certa mistura de conceitos diferentes. O cão ou a árvore podem tocar-se, ver-se, ouvir-se, enfim, apreender-se com os sentidos. O amor, ou a sua evidência, tal como Deus, são intangíveis. As manifestações do Amor podem ser tangíveis, como os beijos, ou os actos de abnegação, agora chamar amor à sua causa, tal como chamar Deus à causa daquilo que pensamos ser manifestações d'ELe, é uma questão de terminologia e escolha pessoal. Eu estou à vontade, porque não acredito em Deus nem no Amor como conceitos abstractos (mas acredito nos cães e nas árvores).

JSA disse...

O post está excelente, mas creio que falha em alguns pontos. O primeiro está na questão da insegurança. A insegurança da Fé, de quem crê, é óbvia, dado viver com um mundo de Fés diferentes e de ausência dessas mesmas Fés. por outro lado, a ausência de Fé apenas existe porque habita esse mesmo mundo, mesmo sendo-lhe estranho. Esclareço: se a Fé é insegura (mantenhamos apenas o argumento no domínio da lógica), é-o dentro de si mesma, dentro da incerteza da interpretação. Dentro da mesma Fé (cristã, por exemplo) podem existir visões diferentes. Todas elas Fés e todas elas fontes de insegurança. A insegurança da Fé alimenta-se, portanto, de si própria. Já a ausência de Fé é alimentada exteriormente pela Fé e pela sociedade da Fé. A ausência de Fé é um corpo estranho no mundo: a insegurança a não-crença é alimentada activamente (ao contrário da insegurança passiva da Fé) pelos que possuem a Fé. Estes questionam ao ausência de Fé e, consequentemente, apresentam uma reprovação muda perante a mesma. O exemplo simples desta questão seria com alguém nascido num mundo sem Fé e que não apresentaria as mesmas dúvidas que alguém nascido num mundo de Fé pura. O mundo sem Fé seria uma espécie de profecia auto-cumprida, o mundo da Fé seria o oposto, seria um mundo de profecia incumprida.

Não faço juízos de valor, até porque acho mais simples não ter Fé e, por isso mesmo, mais digno de admiração quem a possui (a Fé verdadeira, não a é instigada pela sociedade). Eu não a possuo (e asseguro que não sou possuído por grandes incertezas e inseguranças) mas admiro quem a tem. Demonstra uma confiança no desconhecido que invejo sinceramente.

JSA disse...

Um outro ponto em falha está na afirmação «em nenhum momento, a fé deixa de se reconhecer como fé». O erro, penso está no facto de se ignorar os elementos da religião. A liturgia católica, a Bíblia (especialmente para os protestantes), as celebrações de santos, etc, tudo isso apresenta a necessidade de reconhecer que a Fé não o é apenas como tal. Necessita de "muletas" que a suportem. A Bíblia é o exemplo mais premente, sendo frequentemente apontada irremediavelmente literal para poder defender a Fé. Uma verdadeira Fé não necessita de explicações ou justificações. Uma Fé é-o, simplesmente.

Quanto aos não-crentes, as experiências laboratoriais não podem nunca provar uma inexistência da divindade (seja ela qual for). Podem apenas desmontar supostas provas da mesma ao apresentar explicações tangíveis e confirmáveis. Por isso mesmo, também, a necessidade de separação entre Fé e seus derivados. A primeira não se consegue discutir. Os segundos sim. E devem sê-lo.

Anónimo disse...

Reconheço que JSA explicou melhor aquilo que eu queria dizer: «Uma verdadeira Fé não necessita de explicações ou justificações». E, é claro, todas estas definições muito pouco académicas serão sempre «uma questão de terminologia e escolha pessoal»,como muito bem diz Miguelt. Como gosto de facilitar o impossível, costumo dizer que o Tempo é a carne de Deus...

Anónimo disse...

O problema da fé é a convivência com o radicalismo que se insinua na análise dogmática a que normalmente se atem. Nunca ouvi dizer a minha é uma das religiões importantes. Sempre ouvi dizer a minha é a única religião, a única verdade. Os meus é que sabem o caminho para a verdade. Eles são os escolhidos. Poderão/quererão as religiões crescer?

xxxxxx disse...

A razão está na fé. Isso é simples de dizer mas complexo de se entender. Em todo caso, quem entende esse fato se livra da dúvida e descobre que a crença faz parte da natureza humana. Leiam O Gene de Deus, de Dean Hamer. Leiam também A Linguagem de Deus, de Francis Collins. Hamer e Collins são dois cientistas extraordinários e ninguém pode dizer que eles não sabem exatamente o que é ciência e fé. Sou brasileiro: claudiomultifocal@yahoo.com.br e gosto de falar sobre esse tema.
Abraços.
Claudio.