quinta-feira, 10 de maio de 2007

O tempo da justiça

Vale a pena voltar a discutir a crise na CML. Não tanto para fazer leituras políticas e muito circunstanciadas da decisão de Marques Mendes (nesse plano, devo reconhecer que o líder do PSD, depois dos precedentes de Valentim Loureiro e Isaltino Morais, não tinha muitas alternativas). Mas para reflectir sobre o que é verdadeiramente essencial.
E o que é verdadeiramente essencial tem, na minha opinião, o potencial para ser uma verdadeira bomba-relógio da nossa democracia.

Refiro-me à fundamental incompatibilidade entre o tempo da justiça e o tempo mediático. Que é exactamente a mesma incompatibilidade que existe entre o tempo da política e o tempo mediático. E todos sabemos que esta última incompatibilidade tem vindo a criar importantes rupturas num sistema democrático representativo que foi concebido para casar os valores da igualdade política com as virtudes da reflexão, da ponderação, da deliberação, e da construção de consensos (prometo voltar mais tarde a este tema). E que são as mesma rupturas que agora aparecem no edifício da justiça.

Senão vejamos: enquanto a justiça reclama reflexão, os media reclamam imediatismo. Enquanto a justiça reclama ponderação, os media exigem dramatismo. Enquanto a justiça reclama por garantias, os media exigem resultados. São linguagens, lógicas, filosofias em tudo antagónicas e largamente irreconciliáveis. E como esta incompatibilidade é fundamental e praticamente irresolúvel assistiremos sempre ao sacrifício de um dos sistemas de valores em detrimento do outro. Para já, parece claro que é a justiça a sacrificada. Na impossibilidade de conciliar os seus tempos e os seus processos com as exigências dos media, a justiça perverte-se, deixa cair princípios, abandona dogmas. E transforma-se lentamente numa justiça mediática, com regras diferentes e muito próprias, que são as únicas que podem vigorar no espaço mediático

Basta recuar até ao mega-processo da Casa Pia para que se perceba na prática o alcance dramático desta incompatibilidade fundamental: a justiça «tradicional» ainda não fez o seu curso enquanto que a justiça «mediática» já há muito apontou vítimas e culpados. E não há nada que a primeira possa vir a fazer para alterar o veredicto da segunda. O mesmo se passou na CML. E não vale a pena perdermos tempo com conversas fiadas sobre presunções de inocência. Carmona Rodrigues foi, para todos os efeitos, julgado e condenado no tribunal da opinião pública. E, no espaço mediático, é esse o tribunal que conta.

Mas o caso da CML comporta ainda uma nova dimensão. Já não se trata, como na Casa Pia, apenas de proceder a um julgamento com regras e processos próprios. Trata-se de tirar daí ilações políticas. E se é verdade que Marques Mendes não tinha grandes alternativas, não é menos verdade que o caminho que inaugurou pode ter a prazo consequências imprevisíveis. Ou alguém duvida que com o precedente criado se abre espaço para a intervenção política (i.e. com consequências políticas) do Ministério Público e dos Juízes? Ou alguém duvida que doravante serão eles quem tem o poder de decidir se tal ou tal responsável político é digno de se manter no cargo ou deve ser forçado a abandoná-lo?

Perigoso caminho este.

5 comentários:

Anónimo disse...

Curiosamente, em conversa com a minha mulher - tida momentos antes de revisitar a vossa excelente Geração - comentávamos o grito de alarme de Helena Roseta, que bateu com a porta ao PS e ameaça arregimentar os batalhões de M. Alegre. Dizia-me ela (a minha mulher...) que o eleitorado bipolar de Lisboa não tinha por onde escolher - o que prova no mínimo a oportunidade política do gesto de Roseta. A Comissão de Gestão que tomar Lisboa será tomada por Lisboa, ou não fará nada.
Concordo absolutamente com a sua visão da esquizofrenia instituída nos tempos e, como você, acho que o cenário é do mais negro que se poderá conseguir. E a sequência descendente da auto-desculpabilização do poder até à ditadura colegial que nos chegará por via da Justiça exibe um tom de tragédia com o sabor da História - mas ainda sem um bom relato das consequências dessa mesma tragédia.
Vista a certa distância - mais propriamente do Porto, o que não é tão relativo assim -, Lisboa imagina-se num sonho selvagem onde se mistura a queda de Fulgêncio Baptista com o baile fantasmagórico de 'Shining' e múltiplas reuniões secretas em obscuras lojas maçónicas. Algo de funestamente distante no Tempo.
Arrisca-se mesmo a ter toda a razão - o que infelizmente é péssimo.

António de Almeida disse...

-Quando a justiça apreciar e chegar a uma conclusão sobre este caso, já não estará em funções o presidente da câmara que os lisboetas, e provavelmente nem o que se há-de-lhe seguir. Como escrevo no meu blog "Direito de opinião", reforma da justiça precisa-se para Portugal, e faço votos que apareçam muitas candidaturas independentes, quanto mais independentes eleitos, menos clientela partidária colocada nos lugares de acessores e empresas municipais, enfim menos boys. Uma última palavra, concordo com a manutenção da actual assembleia municipal, mas apenas por uma única razão, é que se as eleições forem apenas para a C.M.L. não existirão por parte do estado ( entenda-se todos nós) direito a qualquer subsídio aos partidos políticos. Por isso é que da esquerda à direita todos reclamam pela queda da assembleia, pudera, sempre entra mais dinheiro nos cofres partidários!

Anónimo disse...

E acredite, caro António Eça de Queiroz, que preferia estar enganado...
Quanto ao ponto que levanta o António de Almeida: também não me parece que existam razões objectivas para a dissolução da Assembleia Municipal. Embora para qualquer observador atento seja evidente que a AM e a sua Presidente muito fizeram nos bastidores para que a situação na CML chegasse onde chegou. Mas isso são contas doutro rosário...

Anónimo disse...

Lanço um desafio à Inspecção Geral das Finanças, que parece agora estar a funcionar de forma competente, porque não inspecionar todas os rendimentos dos autarcas e vereadores das nossas linda Câmaras, mas sem esquecer os vereadores da Oposição, pois estes andam sempre muito caladinhos!

Inez Dentinho disse...

Pedro, concordo consido. Mas ao desencontro entre os relógios da Justiça e da Política e à dependência gerada, no caso CML, entre os dois campos, deixe-me acrescentar o antagonismo criado entre os independentes e os partidos.
O cisma entre a sociedade civil e os partidos políticos emerge no dramatismo das palavras de Carmona Rodrigues, na radicalidade da candidatura de Helena Roseta e no desespero das escolhas dos maiores partidos onde a forte candidatura do PS desfalca o Governo na véspera da Presidência de Portugal na UE e o PSD deserta na importante Câmara de Sintra para tentar ganhar Lisboa. Em ambos os partidos, não haveria mais ninguém com valor? Parece que não, o que é confrangedor.
O centrão parece ter aprendido com o caso CML: independentes nunca mais. Carmona e Roseta dirão: partidos nunca mais.
E o Povo? Teria direito a mais escolhas nos partidos e entre os mais aptos da sociedade civil.
O saber não se faz apenas de experiencias mas de princípios que sobrevivam às experiências.