domingo, 29 de abril de 2007

A 8ª arte


Adoro BD.

Dito assim, parece uma puerilidade. A banda desenhada não são os comic strips, as tiras do jornal, as histórias em quadradinhos dos super-heróis da Marvel, do Tio Patinhas e do Zé Carioca, do Super-Homem, Homem-Aranha, Batman e outras patetices? Não estou a ter apenas uma regressão infantilóide?

Quem acha isto não é só da Geração de 60: cristalizou nos anos 60. Ter uma opinião destas é o equivalente a achar que o rock moderno são os Beatles ou o cinema moderno é Bergman (para dar um exemplo sueco, embora não mudo!).

Nas últimas duas décadas, a BD (à falta de melhor termo) evoluiu profundamente. Longe vão os tempos dos patéticos heróis com super-poderes. Nos anos 80 as histórias evoluiram e começaram a ser conhecidas por graphic novels. Hoje, não é exagero classificar as melhores como arte gráfica. Vou dar os meus cinco exemplos favoritos. Mas asseguro que poderia dar outros tantos.

Art Spiegelman. O seu Maus, em dois volumes, é a narrativa mais arrepiante de Auschwitz que alguma vez li (e já li muitas, de This way for the gas, ladies and gentlemen, de Tadeusz Bororowski, a Auschwitz: a doctor’s eyewitness account, de Miklos Nyiszly (que funcionou como assessor de Mengele), a Death Dealer, autobiografia de Rudolf Höss (o kapo de Auschwitz), a várias obras de Primo Levi. Ao seu lado a Lista de Schindler é quase um documentário do Canal História. A quem não acredita, recomendo que se retire um dia, isolado, com os dois volumes, sem interagir com nenhuma alma humana. Eu fi-lo, e chorei como nunca na vida. O In the shadow of two towers, relato gráfico da psicose que o 11 de Setembro lhe provocou, é também impressionante (embora noutro sentido).

Frank Miller. Provavelmente o meu artista gráfico preferido. O seu Sin City, em 7 volumes, e o 300, sobre a batalha das Termópilas, tiveram um efeito único na História da Arte. Foram realizados filmes (o 300 actualmente em exibição) que não são meramente baseados nos livros: o seu objectivo é imitar os livros de Banda Desenhada. As cenas filmadas pretendem, não necessariamente ser realistas, mas reproduzir os quadros da banda desenhada. E são muito mais interessantes assim. É todo um novo paradigma de Arte. O cinema tenta reproduzir, e não meramente basear-se, na literatura gráfica. Já agora: Frank Miller também recriou Batman - mas um Batman humano, velho e que se tentea reinventar depois da Geração de 60.

Neil Gaiman. Gaiman é o protótipo do artista muiltifacetado. Inglês, escritor de ficção, poemas, contos e romances como American Gods ou Anansi’s Boys (com um bizarro e mágico sentido das coisas), argumentista de filmes como Mirrormask, a obra da sua vida é sem dívida a criação do mundo onírico e mágico de Sandman, uma banda desenhada que cria um universo mítico que se entrelaça com o mundo real com uma complexidade que considero apenas comparável ao de Tolkien e que conquistou diversos prémios literários. Note-se: prémios literários. Neil Gaiman é o argumentista, não o desenhador. A sua obra é fantástica: prolonga-se por mais de 2000 páginas e 10 anos. Começa a ser disponibilizada em Portugal pela Devir.

Fables. Um produto colectivo (Willingham, Medina, Leihaloha, Hamilton) que é o herdeiro, no século XXI, do Sandman de Neil Gaiman. É impossível descrever em poucas palavras uma ficção deste género. Mais uma vez, a sua complexidade narrativa e psicológica é tal que já vai no 8º volume, e continua. Também a Devir nos começa a trazer esta obra de arte.

100 Buletts, de Brian Azzarello e Eduardo Risso. Eu adoro o noir. Li todo o Philip Marlowe do Raymond Chandler (várias vezes), e vi os filmes com o Humphrey Bogart a fazer de Marlowe. É a única coisa que acho comparável a 100 Bullets, que tem personagens igualmente gráficas e um enredo muito mais denso.

BD, uma coisa infantil? Think again. É como achar que a música pop é o iéié dos anos 60. Como dizia há alguns anos uma astróloga da nossa praça, “Não julgue à partida uma Ciência que desconhece”. Neste caso, não julgue à partida uma Arte que desconhece. Tudo isto é um novo meio, é literatura, é arte. A 8ª Arte.

10 comentários:

Manuel S. Fonseca disse...

Fiquei fascinado. Tenho de ler já o Maus do Spielgman. Pelo tema, pela comparação com a Lista do Spielberg, pela atractiva hipótese de passar um dia inteiro a chorar baba e ranho.
Nota de rodapé: o Bergman, às vezes, é bem mais mudo do que sueco. Lembro Persona, Sétimo Selo e O Silêncio. Cabe ao PN dizer se sim ou sopas!

Jorge Buescu disse...

Caro Manuel:

O Maus do Spiegelman é otherwordly. Mas exige um retiro. Ininterrumpto. A sério, não é pose. Acho que existe em português. De todas as vezes que li seguido chorei (demora um dia a ler).

Jorge Buescu disse...

Ah! esqueci-me: são dois volumes, com o titulo comum "A survivor's tale" : "1: my father bleeds history" e "2:here my troubles began" (não sei os titulos em portugues). Mas aão uma só história, e têm de ser lidos de seguida.

Anónimo disse...

Provavelmente já o sabe, mas mesmo assim aqui fica a dica: a obra completa do Sandman (em inglês, claro) foi republicada com novas cores num só volume, e encontramo-la na FNAC por 80 euros (e que, para 10 volumes, está bastante barato).

Hugo
http://dottoratoamilano.blogs.sapo.pt

Miguel Marujo disse...

O Maus está editado pela Difel, em dois volumes, como a edição original americana. Não sei se já existe a edição num único volume, como entretanto apareceu nos EUA...

Jorge Buescu disse...

Caro anonimo: sim, já a vi lá. Já estive tentado a trazê-la, só por uma questão de culto: tenho todos os volumes - mais uns que não fazem parte da colecção, como Endless nights ou The dream hunters.

O Sandman é, para mim e não só, o pico absoluto da 8ª arte.

Anónimo disse...

Concordamos quando ao Sandman. Como último comentário, digo apenas que fico curioso com o que virá nos próximos volumes (já que vem referido como Vol 1 - de facto, já ouvi dizer que eram 4, mas não tenho confirmações).

Quero apenas deixar aqui também a referência do grande Alan Moore (este também bastante "negro", como o Frank Miller), que entre outras verdadeiras obras de arte escreveu o excelente "V for Vendetta" (uma das minhas BD's preferidas) e um Batman completamente para adultos, no "The Killing Joke".

Cumprimentos,
Hugo
http://dottoratoamilano.blogs.sapo.pt

Jorge Buescu disse...

Caro anónimo: vai-me perdoar, mas não consigo pôr o Alan Moore ao nível destes. Demasiado "super-heroizesco". V for Vendetta é excelente, o melhor dele (provavelmente por isso foi adaptado a filme). O Killing joke é bom. Mas depois aparecem coisas um bocado patetas: Albion, The league of extraordinary gentlemen... o Watchmen foi uma desilusão... gostos não se discutem, mas para mim o Moore está na segunda divisão. Faria parte de um segunda lista de cinco que eu daria, mas não está na Liga dos Campeões (o Chelsea também não!).

Jorge Buescu disse...

As minhas desculpas pelo ultimo comentário: o anónimo tem nome. Desculpe, Hugo!

Anónimo disse...

Jorge, permite-me que acrescente à sua lista os magníficos François Shuiten et Benoît Peters?