Proust era católico
Proust era judeu ou cristão?
1.
Foi baptizado em 5 de Agosto de 1871 na
Igreja Saint-Louis d’Antin, paróquia dos Proust (DIESBACH, Ghislain de, Proust,
Perrin, Paris, 2022, p. 26).
2.
O seu avô judeu, Nathan, embora respeitasse
os rituais judeus, seguia as predicações de Quaresma em Notre-Dame de Paris (p.
28).
3.
A educação da sua Mãe é liberal sob o
ponto de vista político e conservadora sob o ponto de vista moral, como era
típico nas famílias judias da época (p. 35).
4.
Aceitou os usos da sua época, e fará
baptizar os seus filhos, frequentará sem dúvida a igreja na suas estadas em
Illiers, mas será enterrada civilmente (p. 36).
5.
A sua Mãe fá-lo seguir um curso de
catecismo, a que assiste com o seu filho (p. 50).
6.
Num seu texto de juventude «L’Irreligion
d’État» revolta-se contra o absurdo de querer uma sociedade sem Deus, quando
esta descristianização é apresentada como uma nova fé, e lembra que a França
deve ao cristianismo as suas maiores obras-primas (p. 180).
7.
Proust assistiu às conferências do padre
Vignot (p. 192).
8.
Proust «aura sur les chrétiens l’œil
ironique et sagace du Juif, et sur les Juifs le regard d’un chrétien sans
tendresse et même sans charité» (p. 246).
9.
Mas a sua perspectiva irónica em relação
aos cristãos é também comum entre os cristãos e os laicos da sua época, e o seu
olhar sobre os judeus é o de muitos cristãos e laicos da sua época. Se ter sangue
judeu da parte da sua Mãe pode ter dado um contributo para o seu olhar nada diz
que era essencial para ele.
10.
O próprio diz «si je suis catholique comme
mon père et mon frère, par contre ma mère est juive» (p. 282).
11.
A sua tia Amiot, sempre adoentada, fazia um
papel dos primórdios do cristianismo e acabava por desarmar com uma doçura angélica
(p. 387), ou seja, um cristianismo burguês, de paródia.
12.
Não concorda que o velho pároco de Illiers,
que lhe ensinou os rudimentos de latim, não seja convidado para uma distribuição
de prémios pelo poder laico (p. 422).
13.
«Que les anticléricaux fassent un peu plus de nuances et
visitent au moins avant d'y mettre la pioche, les grandes constructions
sociales qu'ils veulent démolir » (p. 423).
14.
Proust aproveita para dizer a Barrès que
não é verdadeiramente judeu (p. 445).
15.
Mostra a sua hostilidade ao general André
na altura do caso das fichas, como às leis anticlericais de Combes (pp. 467, 496-497).
16.
Paul Morand ouve-o contar anedotas anti-semitas
(p. 830). Chamava a «Vida de Jesus» de Renan a «Belle Hélène do cristianismo»
(p. 927) dando a entender que era uma obra de opereta e ficção.
17.
Sentindo-se morrer, pede à sua criada que chame
o padre Mugnier (pp. 973, 975). O seu funeral foi feito na capela Saint-Pierre-de-Chaillot
(p. 976).
Sintetizando: (1) A
Mãe de Proust era judia? Sim. Mas não piedosa, nem catequizante, assimilada não
apenas sob o ponto de vista da cultura laica, literária ou científica, mas
também até por via da família, próxima da prática católica (por exemplo, o tio
que assiste a prédicas pascais católicas). (2) A família paterna de Proust
era católica? Sim, sem qualquer dúvida. (3) Proust era católico? Sim,
sem dúvida nenhuma, como o seu irmão. Baptizado, catequizado e dizendo de si
mesmo ser católico. Sim, como a imensa maioria dos franceses da época, que não carecem
de ter êxtases místicas de Santa Catarina de Siena para se verem como católicos.
Um catolicismo burguês, feito dos extremos da auto-lamentação e do estoicismo.
Um catolicismo de práticas culturais, nos casamentos, baptizados, épocas
festivas.
Mas agora enfrentemos a
questão mais dura: (4) Proust era um fervoroso crente? E esta questão
divide-se em duas: (4A) é sempre importante verificar uma fervorosa fé para
se merecer esta qualificação? E (4B) qual seria o tipo de fé de Proust?
Quanto à questão (4A)
quem ache que é fundamental que haja uma fervorosa crença para qualificar
alguém como de uma religião terá de entender então que a maioria dos génios
judeus não eram judeus. Nem Espinosa, nem Einstein eram fervorosos seguidores
do judaísmo. Quem usar este critério está a afastar quase todos as pessoas relevantes
na História com origem judaica da qualificação de judeus e quem usar esse
critério esqueça a referência ao facto de Einstein ser judeu.
Quanto à (4B) é questão
mais difícil. Em geral é muito difícil entrar na intimidade de alguém. Mas isto
tanto mais quanto o século XIX, que é um século glorioso para o cristianismo,
um século de expansão na Ásia e na África, é visto porque quem tem uma
perspectiva provinciana como o século da dita «morte de Deus». No entanto, a
cultura teológica dos homens cultos não era a mais aprofundada em geral.
Poderiam conhecer muito bem a História das ordens religiosas, os clérigos mais conhecidos,
as representações artísticas e literárias dos santos eram bem melhor conhecidas
que pelos os homens actuais. Mas poucos saberiam pronunciar-se sobre a
«homoousia» ou o problema da «theosis». Os místicos que eram estudados eram
lidos numa perspectiva estética. Neste sentido, se Proust não era católico, a
grande maioria da sociedade da sua época não o era. Isto a começar pelos reis
de Portugal e Espanha até muitos bispos. Procurar a peculiaridade de Proust no seu
impulso anticristão, ou judeu é assim algo ocioso. A sua recusa da perseguição laicista
é também sintomática. Não significa forçosamente uma fé, mas antes o
reconhecimento de um mérito (dos católicos e do catolicismo) e a repulsa pelo fanatismo
laicista.
O facto de pedir a
presença de um padre na hora da morte pode-se também argumentar não significa
uma profunda fé católica, mas apenas um sintoma de conformismo social. E Proust
tinha, como todos os seres humanos, aspectos de conformismo. Mas começam a ser elementos
a mais para se descurar a profunda relação que tinha com o catolicismo. De
sangue, de cultura, de admiração pela dívida que a cultura francesa a ele
tinha, no momento final da sua vida. Se se esperar como prova da sua fé que Proust
levite como São Francisco de Paula, temos de reconhecer que na História terá
havido poucos, muito poucos, católicos. Como poucos judeus viram a sarça
ardente ou maometanos receberam o anjo Gabriel.
Alexandre Brandão da Veiga