segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Proust era católico

Proust era judeu ou cristão?

 

1.     Foi baptizado em 5 de Agosto de 1871 na Igreja Saint-Louis d’Antin, paróquia dos Proust (DIESBACH, Ghislain de, Proust, Perrin, Paris, 2022, p. 26).

2.     O seu avô judeu, Nathan, embora respeitasse os rituais judeus, seguia as predicações de Quaresma em Notre-Dame de Paris (p. 28).

3.     A educação da sua Mãe é liberal sob o ponto de vista político e conservadora sob o ponto de vista moral, como era típico nas famílias judias da época (p. 35).

4.     Aceitou os usos da sua época, e fará baptizar os seus filhos, frequentará sem dúvida a igreja na suas estadas em Illiers, mas será enterrada civilmente (p. 36).

5.     A sua Mãe fá-lo seguir um curso de catecismo, a que assiste com o seu filho (p. 50).

6.     Num seu texto de juventude «L’Irreligion d’État» revolta-se contra o absurdo de querer uma sociedade sem Deus, quando esta descristianização é apresentada como uma nova fé, e lembra que a França deve ao cristianismo as suas maiores obras-primas (p. 180).

7.     Proust assistiu às conferências do padre Vignot (p. 192).

8.     Proust «aura sur les chrétiens l’œil ironique et sagace du Juif, et sur les Juifs le regard d’un chrétien sans tendresse et même sans charité» (p. 246).

9.     Mas a sua perspectiva irónica em relação aos cristãos é também comum entre os cristãos e os laicos da sua época, e o seu olhar sobre os judeus é o de muitos cristãos e laicos da sua época. Se ter sangue judeu da parte da sua Mãe pode ter dado um contributo para o seu olhar nada diz que era essencial para ele.

10.  O próprio diz «si je suis catholique comme mon père et mon frère, par contre ma mère est juive» (p. 282).

11.  A sua tia Amiot, sempre adoentada, fazia um papel dos primórdios do cristianismo e acabava por desarmar com uma doçura angélica (p. 387), ou seja, um cristianismo burguês, de paródia.

12.  Não concorda que o velho pároco de Illiers, que lhe ensinou os rudimentos de latim, não seja convidado para uma distribuição de prémios pelo poder laico (p. 422).

13.  «Que les anticléricaux fassent un peu plus de nuances et visitent au moins avant d'y mettre la pioche, les grandes constructions sociales qu'ils veulent démolir » (p. 423).

14.  Proust aproveita para dizer a Barrès que não é verdadeiramente judeu (p. 445).

15.  Mostra a sua hostilidade ao general André na altura do caso das fichas, como às leis anticlericais de Combes (pp. 467, 496-497).

16.  Paul Morand ouve-o contar anedotas anti-semitas (p. 830). Chamava a «Vida de Jesus» de Renan a «Belle Hélène do cristianismo» (p. 927) dando a entender que era uma obra de opereta e ficção.

17.  Sentindo-se morrer, pede à sua criada que chame o padre Mugnier (pp. 973, 975). O seu funeral foi feito na capela Saint-Pierre-de-Chaillot (p. 976).

 

Sintetizando: (1) A Mãe de Proust era judia? Sim. Mas não piedosa, nem catequizante, assimilada não apenas sob o ponto de vista da cultura laica, literária ou científica, mas também até por via da família, próxima da prática católica (por exemplo, o tio que assiste a prédicas pascais católicas). (2) A família paterna de Proust era católica? Sim, sem qualquer dúvida. (3) Proust era católico? Sim, sem dúvida nenhuma, como o seu irmão. Baptizado, catequizado e dizendo de si mesmo ser católico. Sim, como a imensa maioria dos franceses da época, que não carecem de ter êxtases místicas de Santa Catarina de Siena para se verem como católicos. Um catolicismo burguês, feito dos extremos da auto-lamentação e do estoicismo. Um catolicismo de práticas culturais, nos casamentos, baptizados, épocas festivas.

 

Mas agora enfrentemos a questão mais dura: (4) Proust era um fervoroso crente? E esta questão divide-se em duas: (4A) é sempre importante verificar uma fervorosa fé para se merecer esta qualificação? E (4B) qual seria o tipo de fé de Proust?

 

Quanto à questão (4A) quem ache que é fundamental que haja uma fervorosa crença para qualificar alguém como de uma religião terá de entender então que a maioria dos génios judeus não eram judeus. Nem Espinosa, nem Einstein eram fervorosos seguidores do judaísmo. Quem usar este critério está a afastar quase todos as pessoas relevantes na História com origem judaica da qualificação de judeus e quem usar esse critério esqueça a referência ao facto de Einstein ser judeu.

 

Quanto à (4B) é questão mais difícil. Em geral é muito difícil entrar na intimidade de alguém. Mas isto tanto mais quanto o século XIX, que é um século glorioso para o cristianismo, um século de expansão na Ásia e na África, é visto porque quem tem uma perspectiva provinciana como o século da dita «morte de Deus». No entanto, a cultura teológica dos homens cultos não era a mais aprofundada em geral. Poderiam conhecer muito bem a História das ordens religiosas, os clérigos mais conhecidos, as representações artísticas e literárias dos santos eram bem melhor conhecidas que pelos os homens actuais. Mas poucos saberiam pronunciar-se sobre a «homoousia» ou o problema da «theosis». Os místicos que eram estudados eram lidos numa perspectiva estética. Neste sentido, se Proust não era católico, a grande maioria da sociedade da sua época não o era. Isto a começar pelos reis de Portugal e Espanha até muitos bispos. Procurar a peculiaridade de Proust no seu impulso anticristão, ou judeu é assim algo ocioso. A sua recusa da perseguição laicista é também sintomática. Não significa forçosamente uma fé, mas antes o reconhecimento de um mérito (dos católicos e do catolicismo) e a repulsa pelo fanatismo laicista.

 

O facto de pedir a presença de um padre na hora da morte pode-se também argumentar não significa uma profunda fé católica, mas apenas um sintoma de conformismo social. E Proust tinha, como todos os seres humanos, aspectos de conformismo. Mas começam a ser elementos a mais para se descurar a profunda relação que tinha com o catolicismo. De sangue, de cultura, de admiração pela dívida que a cultura francesa a ele tinha, no momento final da sua vida. Se se esperar como prova da sua fé que Proust levite como São Francisco de Paula, temos de reconhecer que na História terá havido poucos, muito poucos, católicos. Como poucos judeus viram a sarça ardente ou maometanos receberam o anjo Gabriel.

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

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