segunda-feira, 15 de setembro de 2025

As culturas são todas iguais?

 Lévi-Strauss dizia que não há culturas superiores ou inferiores, as culturas são todas iguais, apenas são diferentes.

 

Poucos homens conseguiram dizer tanto dislate em tão poucas palavras.

 1. Dizer que as culturas são iguais é um juízo de valor. Tão juízo de valor quanto dizer que as há superiores e inferiores. É substituir um juízo de valor por outro juízo de valor. Nenhum passo científico foi dado com isto.

2. É desonesto intelectualmente porque dá a entender que finalmente se superaram os juízos de valor e passámos a uma análise científica.

3. Sob o ponto de vista lógico é uma proposição universal empírica. Para ser demonstrada teria de haver análise de todas as culturas. Ora Lévi-Strauss não as conhece todas. Nem a europeia conhece bem, porque nunca soube matemática, física, teologia, e de psicologia e filosofia era estreito o seu conhecimento. Está portanto a doutrinar sobre o que não sabe.

4. Sendo uma proposição universal positiva, sob o ponto de vista lógico basta dar um contra-exemplo para demonstrar a sua falsidade. E é fácil de demonstrar que a cultura grega clássica era superior à assíria ou a francesa é superior à turca. Quem achar o contrário tente usar um computador ou andar de avião com base na ciência turca.

5. É apenas um mandado moral. Uma mera imposição e não uma afirmação sobre facto. Mas porque quer fazer imposições morais em vez de falar da realidade? Porque se acoita em algo tão pequeno burguês como o mandado moral?

6. É uma tese de facilidade intelectual. Já na altura em que o defendeu, mas cada vez mais hoje em dia, quem defende a igualdade entre as culturas não tem de demonstrar mais nada. Posta-se rodeado por sorrisos de anuência. Entra triunfante num campeonato que já o decidiu como vencedor antes de começar a correr. Duro, exigindo conhecimento profundo de duas culturas pelo menos, é a afirmação fundamentada da superioridade de uma sobre outra ou outras.

7.  7. Dentro da cultura europeia, Lévi-Strauss não achava que todas as manifestações culturais eram iguais. Por isso não citava um artigo sobre modas e bordados como citaria um artigo científico. 

    8. Significativamente não há memória de que tenha dito que há, não só pessoas, mas inteiras partes na cultura Bororó que são medíocres como as revistas de modas e bordados. Se a elas não aplica os mesmos critérios que usa com a europeia quer apenas dizer que as aprecia de outra forma. Como um objecto. Tudo nelas é interessante, como para um naturalista é interessante a defecação de um elefante ou o metabolismo de uma amiba. E, caso nos queira convencer do elevado nível cultural da amiba, desmonta de um só golpe que acha que há coisas de elevado nível, e portanto tem de haver de baixo - um nível só é elevado por comparação - e o seu ridículo. As amibas serem de elevado nível cultural...

 

Afirmar a igualdade de todas as culturas revela assim até que ponto se percebe que há na sua mente apenas duas culturas: a europeia, que pode ser elementos e pessoas desprezíveis, e as outras que são sempre interessantes em todas as suas dimensões, mas como objectos. Nenhuma ideia separa mais a cultura europeia das outras que esta da igualdade. É quem afirma a igualdade das culturas que mais as separa.

 

Mas porque Lévi-Strauss quer impor este mandado? Talvez isso tenha a ver com o refeitório de casa do seu avô onde uma placa dizia: «mastiga bem para digerires bem». Está tudo dito. Uma casa destas não é fidalga, é o mínimo que se pode dizer. Ter feito um livro sobre os modos à mesa para demonstrar que somos todos selvagens... Ele poderá falar da família dele com mais autoridade que eu.

 

Ainda nos empesta este mandado moral da pequena burguesia. Nietzsche viu bem que era o ressentimento do plebeu. Se Lévi-Strauss se deliciava com Wagner sem perceber que os Bororós nunca poderiam fazer Wagner, é o problema dele. Quem tinha alguma razão era Bordieu que dizia que não há diferença de valor entre Stravinsky e Petula Clarke. Dou-lhe razão. Acho que os livros de Bordieu têm o mesmo valor que uma revista de bordados.

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

 

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segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Proust era católico

Proust era judeu ou cristão?

 

1.     Foi baptizado em 5 de Agosto de 1871 na Igreja Saint-Louis d’Antin, paróquia dos Proust (DIESBACH, Ghislain de, Proust, Perrin, Paris, 2022, p. 26).

2.     O seu avô judeu, Nathan, embora respeitasse os rituais judeus, seguia as predicações de Quaresma em Notre-Dame de Paris (p. 28).

3.     A educação da sua Mãe é liberal sob o ponto de vista político e conservadora sob o ponto de vista moral, como era típico nas famílias judias da época (p. 35).

4.     Aceitou os usos da sua época, e fará baptizar os seus filhos, frequentará sem dúvida a igreja na suas estadas em Illiers, mas será enterrada civilmente (p. 36).

5.     A sua Mãe fá-lo seguir um curso de catecismo, a que assiste com o seu filho (p. 50).

6.     Num seu texto de juventude «L’Irreligion d’État» revolta-se contra o absurdo de querer uma sociedade sem Deus, quando esta descristianização é apresentada como uma nova fé, e lembra que a França deve ao cristianismo as suas maiores obras-primas (p. 180).

7.     Proust assistiu às conferências do padre Vignot (p. 192).

8.     Proust «aura sur les chrétiens l’œil ironique et sagace du Juif, et sur les Juifs le regard d’un chrétien sans tendresse et même sans charité» (p. 246).

9.     Mas a sua perspectiva irónica em relação aos cristãos é também comum entre os cristãos e os laicos da sua época, e o seu olhar sobre os judeus é o de muitos cristãos e laicos da sua época. Se ter sangue judeu da parte da sua Mãe pode ter dado um contributo para o seu olhar nada diz que era essencial para ele.

10.  O próprio diz «si je suis catholique comme mon père et mon frère, par contre ma mère est juive» (p. 282).

11.  A sua tia Amiot, sempre adoentada, fazia um papel dos primórdios do cristianismo e acabava por desarmar com uma doçura angélica (p. 387), ou seja, um cristianismo burguês, de paródia.

12.  Não concorda que o velho pároco de Illiers, que lhe ensinou os rudimentos de latim, não seja convidado para uma distribuição de prémios pelo poder laico (p. 422).

13.  «Que les anticléricaux fassent un peu plus de nuances et visitent au moins avant d'y mettre la pioche, les grandes constructions sociales qu'ils veulent démolir » (p. 423).

14.  Proust aproveita para dizer a Barrès que não é verdadeiramente judeu (p. 445).

15.  Mostra a sua hostilidade ao general André na altura do caso das fichas, como às leis anticlericais de Combes (pp. 467, 496-497).

16.  Paul Morand ouve-o contar anedotas anti-semitas (p. 830). Chamava a «Vida de Jesus» de Renan a «Belle Hélène do cristianismo» (p. 927) dando a entender que era uma obra de opereta e ficção.

17.  Sentindo-se morrer, pede à sua criada que chame o padre Mugnier (pp. 973, 975). O seu funeral foi feito na capela Saint-Pierre-de-Chaillot (p. 976).

 

Sintetizando: (1) A Mãe de Proust era judia? Sim. Mas não piedosa, nem catequizante, assimilada não apenas sob o ponto de vista da cultura laica, literária ou científica, mas também até por via da família, próxima da prática católica (por exemplo, o tio que assiste a prédicas pascais católicas). (2) A família paterna de Proust era católica? Sim, sem qualquer dúvida. (3) Proust era católico? Sim, sem dúvida nenhuma, como o seu irmão. Baptizado, catequizado e dizendo de si mesmo ser católico. Sim, como a imensa maioria dos franceses da época, que não carecem de ter êxtases místicas de Santa Catarina de Siena para se verem como católicos. Um catolicismo burguês, feito dos extremos da auto-lamentação e do estoicismo. Um catolicismo de práticas culturais, nos casamentos, baptizados, épocas festivas.

 

Mas agora enfrentemos a questão mais dura: (4) Proust era um fervoroso crente? E esta questão divide-se em duas: (4A) é sempre importante verificar uma fervorosa fé para se merecer esta qualificação? E (4B) qual seria o tipo de fé de Proust?

 

Quanto à questão (4A) quem ache que é fundamental que haja uma fervorosa crença para qualificar alguém como de uma religião terá de entender então que a maioria dos génios judeus não eram judeus. Nem Espinosa, nem Einstein eram fervorosos seguidores do judaísmo. Quem usar este critério está a afastar quase todos as pessoas relevantes na História com origem judaica da qualificação de judeus e quem usar esse critério esqueça a referência ao facto de Einstein ser judeu.

 

Quanto à (4B) é questão mais difícil. Em geral é muito difícil entrar na intimidade de alguém. Mas isto tanto mais quanto o século XIX, que é um século glorioso para o cristianismo, um século de expansão na Ásia e na África, é visto porque quem tem uma perspectiva provinciana como o século da dita «morte de Deus». No entanto, a cultura teológica dos homens cultos não era a mais aprofundada em geral. Poderiam conhecer muito bem a História das ordens religiosas, os clérigos mais conhecidos, as representações artísticas e literárias dos santos eram bem melhor conhecidas que pelos os homens actuais. Mas poucos saberiam pronunciar-se sobre a «homoousia» ou o problema da «theosis». Os místicos que eram estudados eram lidos numa perspectiva estética. Neste sentido, se Proust não era católico, a grande maioria da sociedade da sua época não o era. Isto a começar pelos reis de Portugal e Espanha até muitos bispos. Procurar a peculiaridade de Proust no seu impulso anticristão, ou judeu é assim algo ocioso. A sua recusa da perseguição laicista é também sintomática. Não significa forçosamente uma fé, mas antes o reconhecimento de um mérito (dos católicos e do catolicismo) e a repulsa pelo fanatismo laicista.

 

O facto de pedir a presença de um padre na hora da morte pode-se também argumentar não significa uma profunda fé católica, mas apenas um sintoma de conformismo social. E Proust tinha, como todos os seres humanos, aspectos de conformismo. Mas começam a ser elementos a mais para se descurar a profunda relação que tinha com o catolicismo. De sangue, de cultura, de admiração pela dívida que a cultura francesa a ele tinha, no momento final da sua vida. Se se esperar como prova da sua fé que Proust levite como São Francisco de Paula, temos de reconhecer que na História terá havido poucos, muito poucos, católicos. Como poucos judeus viram a sarça ardente ou maometanos receberam o anjo Gabriel.

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

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