segunda-feira, 8 de abril de 2024

A apologética muçulmana

 


Na época actual e no dito Ocidente há dois traços que marcam a apologética muçulmana. Digo no Ocidente porque em países asiáticos como a Turquia a necessidade apologética não é inexistente mas diversa.

 

Dois traços: a razoabilidade, os limites lógicos, se se quiser, e a numerologia.

 

A razoabilidade e a lógica não são a mesma coisa, mas na apologética muçulmana identificam-se e isso diz algo da sua antropologia mais que da lógica ou da razoabilidade. Entendamo-nos. Como se vê um muçulmano? Não é filho de Deus, é mera criatura. Não é amado por Deus. É absurdo achar que Deus ama seres tão infinitamente distantes d’Ele. Deus não fez nem nunca fará nenhum sacrifício por ele, como é evidente. E Deus não fala nem nunca falará com ele. Mesmo a Maomé foi um anjo que falou.

 

Um texto místico do islão diz: entre Mim e ti não há caminho. Exacto. O homem é uma mera criatura, eternamente sem ouvir Deus nem com alguma possibilidade de alguma vez O ver.

 

Por isso se compreende que para o muçulmano seja absurdo um Deus que ama o homem e que Se revela na Sua intimidade como relação. Deus nunca Se revela, é o absolutamente Outro. Não nos ama, não faz por nós nenhum sacrifício. É razoável, e por isso parece lógico.

 

O problema é que o homem actual do dito Ocidente tem dificuldade em destrinçar a razoabilidade da racionalidade. As teorias matemáticas dos transfinitos nada têm de razoável, mas são perfeitamente racionais. E como o homem moderno tem pouco contacto com o infinito, deixa-se levar por algum cheiro desta argumentação.

 

A outra dimensão da apologética muçulmana no Ocidente é numerológica. A visão numerológica da teologia não é liminarmente ilícita. Santo Agostinho tinha alguma tendência para isso. E em nada essa tendência lhe estragou a lucidez. Ajudou-o mesmo a perceber a Trindade. Não é mau. Mas era guiado por um forte sentido da Incarnação. E isso conteve os efeitos secundários do seu lado pitagórico. Se bem me lembro, é o próprio papa Bento XVI que o chama de pitagórico.

 

O problema de uma visão meramente numerológica é precisamente a da sua fragilidade racional. Em primeiro lugar, assenta muitas vezes em relações matemáticas que são triviais, outras vezes inevitáveis ou quase, em geral irrelevantes sob o ponto de vista estatístico ou matemático. E mais grave ainda, irrelevantes sob o ponto de vista teológico. O número de vezes que aparece uma palavra, as proporções entre o número de palavras e um capítulo podem ter alguma relevância estilométrica, quando muito, mas duvidosamente dizem algo sobre a revelação divina. Salvo se se entender que o divino é trivial.

 

Mas é também sintomático da incultura histórica dos teólogos muçulmanos. A ideia de crítica do texto, de uma História da tradição, que de modo mais ou menos desenvolvido aparece na teologia europeia, é-lhes estranho. Falar de estratos de um texto, das suas variantes, é-lhes interdito sob o ponto de vista teológico e inconcebível sob o ponto de vista intelectual.

 

No fundo, uma e outra tendência estão ligadas. Identificar razão e razoabilidade é mostra de um pensamento provincial, que esquece que a razão tem múltiplas manifestações, a matemática, a histórica, a filológica, a biológica, entre outras. E são muitas vezes surpreendentes, ou seja, bem pouco razoáveis. 

 

A ideia de um Deus transcendente e sem comunicação connosco tem como efeito só aparentemente paradoxal que apenas se admite um Deus conceptualmente razoável, ou seja, comezinho, provincial, medíocre. Um e três são coisas diferentes, um Criador não pode amar a criatura porque isso seria fetichismo, um texto sagrado não pode ter uma História. O mundo transcendente não dialoga com o humano, na melhor das hipóteses dá-lhe ordens, imposições, destinos férreos. Tudo isto é razoável, e como dizia o outro: tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é fado.

 

A apologética tenta apresentar o islão como uma religião razoável, esquecendo que à sua volta dois monstros acossam essa mesma apologética. Os actos pouco razoáveis que se praticam em nome do islão, e o facto de a razoabilidade ser uma limitação. Da razão humana, mas também da própria concepção de Deus.

 

No fundo também, revelam a esterilidade de um pensamento, fracamente matemático, sem capacidade crítica do texto, sem capacidade de verdadeira análise histórica. Erudição despida, sem capacidade de criar nexos de ligação ou um pensamento vivo. Exactamente como a maioria das teses de doutoramento. Por isso, se não atraem os cientistas, não os chocam, e se não dão a volta à cabeça dos das humanidades, estes já estão habituados a textos enfardados e sem viço. Em suma, sentem uma afinidade mole com os apologetas maometanos. Mas como as suas afinidades são sempre moles, sentem-se em casa, uns e outros.

 

Se não suscitam o imediato ridículo é porque acendem as luzes moles de uma fraca afinidade com o que o dito Ocidente promove hoje em dia. Em vez de um pensamento duro, predador, heróico, sem piedade, como o de Newton ou Pascal, encontram um pensamento que se diz fraco com Vattimo e só nessa confissão tem uma ponta de verdade.

 

A apologética maometana só não é objecto de ridículo como o seria até à II Guerra Mundial, porque entrou numa época em que se cultiva a mediocridade, o sentencioso, uma abertura invertebrada. O que tem de cómica só não é percebido porque a cultura da época é tristonha e se sustenta, não de alimento saudável, mas de ansiolíticos e antidepressivos. Que exista neste estado é a vergonha dos de Mafoma. Que seja recebida por nós é a nossa vergonha. Nos templos do pensamento há vassouras. Servem para limpar o lixo que entra e nem no fanum deve ter direito de cidade.

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

(mais)