quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

As origens do politicamente correcto








É bem conhecido o episódio. Durante a Revolução Francesa a turba cortou a cabeça da princesa de Lamballe. Mas não ficou satisfeita com isso. Pôs a cabeça da princesa a dançar em cima de uma lança e passeou-a por Paris. O grau de sensibilidade da canalha era tal que se lembraram de levar a cabeça a passar pela prisão do Templo, onde a família real estava presa. Não fora a rainha de França não ter percebido que se tinha cortado a cabeça da sua amiga. Era importante que os soberanos vissem onde terminam as cabeças nobres. Chateaubriand, se bem me lembro, também testemunhou o facto, e o seu ar de repulsa ia-lhe dando problemas com a turba.


Afinal é uma alegria, uma imensa alegria, fazer dançar a cabeça de uma aristocrata numa lança. A canalha fica feliz. A coisa liberta-a.


Eis que aparece o politicamente correcto, expressão grosseira, imprecisa, invasiva. Usemo-la, à falta de melhor. Também aqui a canalha quis impor-se, mas não tem interesse agora saber da cara do seu conteúdo, mas a tez da sua origem.


E a origem é simples. A natureza tem horror do vazio. Eis-me a proferir inépcias escolásticas, antecipo a crítica. «Toda a santidade vem do Espírito Santo. A natureza não faz saltos» dizia Mestre Erckhart. Mas também Hilbert, esse autor escolástico e reaccionário, pensou incluir como axioma da física matemática «a natureza não dá saltos», ou seja, as funções na física matemática são todas contínuas.


Seja. Sejamos escolásticos se assim der jeito ao mirone. O que está antes do politicamente correcto? Uma política de destruição da tradição, das regras de etiqueta. Lembro-me de ser adolescente e, perante duma amiga e um amigo muito dados à antropologia, e muito fascinados com o ritual de chá japonês e a sua profundidade, de ter chamado a atenção para o facto de o ritual do chá europeu ser de uma imensa complexidade. Ao que me responderam: Etiqueta? Meras regras de demarcação do território. Cãezinhos a urinar para as árvores.


Já o sabíamos. Tudo o que é europeu de origem é mau, tudo o que tem marca aristocrática. Por isso sobretudo desde os anos sessenta a plebe decidiu arrasar o edifício da etiqueta tradicional. E foi vitoriosa. Hoje em dia é raro estar numa sala onde mais de duas pessoas saibam exactamente o que mandam as regras do bem estar e bem viver.

Parabéns, plebeu. Ganhaste. Mas o problema foi precisamente a sua vitória. Criou o vazio. E, confrontado com esse vazio, o plebeu sentiu-se horrorizado. Vazio, ele mesmo. Não gosta de ver a sua imagem ao espelho. Não quis ver o vazio, porque sabia que era o seu retrato que via. E por isso pôs-se a encher o espaço à sua volta. Com regras. Precisamente, com regras. Muitas regras. Desconexas, inorgânicas, deselegantes, feias. À sua imagem. A canalha que antes destruiu as regras todas dedica-se agora a criar regras.


Contra as normas linguísticas, faz acordos ortográficos se lhe pagarem. Contra as regras de etiqueta, cria novas à sua imagem: rígidas, sem profundidade sem História, grosseiras, feias.


Daí que o politicamente correcto apresente simultaneamente um aspecto cómico e devorador. Vem do vazio e cria à sua volta o vazio. Tanto mais regras consegue parir, mais abortos saem do seu ventre. Filhos de uma Atena indisposta, saem apenas monstros que comem tudo à sua passagem, proíbem tudo, de forma indiscriminada, vindos dos mesmos que diziam tudo querer libertar.


Qual a origem do politicamente correcto? Pois esta origem lhe explica cara. É a da canalha que leva por cima da lança a cabeça da princesa de Lamballe, sentindo-se importante apenas por chocar os que lhe são superiores, criando a repulsa e o nojo à sua volta, em quem tem critério, e a submissão, em que vem da mesma plebe e perdeu a esperança de subir.


Qual a origem do politicamente correcto? Desta mesma canalha, que depois de ter feito dançar a cabeça da princesa de Lamballe, quer-nos ensinar a dançar o minuete.



Alexandre Brandão da Veiga




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