As origens do politicamente correcto
É bem conhecido o episódio.
Durante a Revolução Francesa a turba cortou a cabeça da princesa de Lamballe. Mas
não ficou satisfeita com isso. Pôs a cabeça da princesa a dançar em cima de uma
lança e passeou-a por Paris. O grau de sensibilidade da canalha era tal que se
lembraram de levar a cabeça a passar pela prisão do Templo, onde a família real
estava presa. Não fora a rainha de França não ter percebido que se tinha cortado
a cabeça da sua amiga. Era importante que os soberanos vissem onde terminam as cabeças
nobres. Chateaubriand, se bem me lembro, também testemunhou o facto, e o seu ar
de repulsa ia-lhe dando problemas com a turba.
Afinal é uma alegria, uma
imensa alegria, fazer dançar a cabeça de uma aristocrata numa lança. A canalha
fica feliz. A coisa liberta-a.
Eis que aparece o politicamente
correcto, expressão grosseira, imprecisa, invasiva. Usemo-la, à falta de
melhor. Também aqui a canalha quis impor-se, mas não tem interesse agora saber da
cara do seu conteúdo, mas a tez da sua origem.
E a origem é simples. A natureza
tem horror do vazio. Eis-me a proferir inépcias escolásticas, antecipo a crítica.
«Toda a santidade vem do Espírito Santo. A natureza não faz saltos» dizia Mestre
Erckhart. Mas também Hilbert, esse autor escolástico e reaccionário, pensou
incluir como axioma da física matemática «a natureza não dá saltos», ou seja,
as funções na física matemática são todas contínuas.
Seja. Sejamos escolásticos
se assim der jeito ao mirone. O que está antes do politicamente correcto? Uma política
de destruição da tradição, das regras de etiqueta. Lembro-me de ser adolescente
e, perante duma amiga e um amigo muito dados à antropologia, e muito fascinados
com o ritual de chá japonês e a sua profundidade, de ter chamado a atenção para
o facto de o ritual do chá europeu ser de uma imensa complexidade. Ao que me responderam:
Etiqueta? Meras regras de demarcação do território. Cãezinhos a urinar para as árvores.
Já o sabíamos. Tudo o que
é europeu de origem é mau, tudo o que tem marca aristocrática. Por isso sobretudo
desde os anos sessenta a plebe decidiu arrasar o edifício da etiqueta tradicional.
E foi vitoriosa. Hoje em dia é raro estar numa sala onde mais de duas pessoas
saibam exactamente o que mandam as regras do bem estar e bem viver.
Parabéns, plebeu. Ganhaste.
Mas o problema foi precisamente a sua vitória. Criou o vazio. E, confrontado
com esse vazio, o plebeu sentiu-se horrorizado. Vazio, ele mesmo. Não gosta de ver
a sua imagem ao espelho. Não quis ver o vazio, porque sabia que era o seu retrato
que via. E por isso pôs-se a encher o espaço à sua volta. Com regras. Precisamente,
com regras. Muitas regras. Desconexas, inorgânicas, deselegantes, feias. À sua
imagem. A canalha que antes destruiu as regras todas dedica-se agora a criar regras.
Contra as normas linguísticas,
faz acordos ortográficos se lhe pagarem. Contra as regras de etiqueta, cria novas
à sua imagem: rígidas, sem profundidade sem História, grosseiras, feias.
Daí que o politicamente correcto
apresente simultaneamente um aspecto cómico e devorador. Vem do vazio e cria à sua
volta o vazio. Tanto mais regras consegue parir, mais abortos saem do seu
ventre. Filhos de uma Atena indisposta, saem apenas monstros que comem tudo à sua
passagem, proíbem tudo, de forma indiscriminada, vindos dos mesmos que diziam
tudo querer libertar.
Qual a origem do politicamente
correcto? Pois esta origem lhe explica cara. É a da canalha que leva por cima da
lança a cabeça da princesa de Lamballe, sentindo-se importante apenas por chocar
os que lhe são superiores, criando a repulsa e o nojo à sua volta, em quem tem critério,
e a submissão, em que vem da mesma plebe e perdeu a esperança de subir.
Qual a origem do politicamente
correcto? Desta mesma canalha, que depois de ter feito dançar a cabeça da princesa
de Lamballe, quer-nos ensinar a dançar o minuete.
Alexandre Brandão da Veiga
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