A questão judaica I
No século XIX e até à II
Guerra Mundial ainda era perfeitamente respeitável falar da questão judaica. Autores
insuspeitos como Marx dedicaram-se a ela. As teorias abundaram, mais ou menos bem-intencionadas,
mais ou menos simplistas. É facto trivial que assim seja, e não nos pode fazer
espantar.
A questão é que depois da
II Guerra Mundial, ou mais precisamente na percepção do grande público, desde
os anos de 1970, tornou-se impossível discutir a questão judaica sem ser acusado
de defensor do sionismo ou de anti-semita.
O resultado é que os
sentimentos ficam subterrâneos e, bons ou maus, revelam-se de forma ínvia. Os
ditos intelectuais de origem judaica dizem que não é muito bonito matar pessoas
mas que foram os palestinos quem começou (é o argumento clássico da vingança)
os bem pensantes anti-semitas choram apenas pelo sofrimento dos palestinos e vêem
semelhanças entre o Estado de Israel e o nazismo. Toynbee, de entre os mais prestigiados,
foi dos primeiros a fazer este aparelho.
Já em tempos disse que o
problema não é terem uns razão e outros não. O problema é terem todos razão.
Quem se vinga tem sempre razão, o que não percebe é que entra num ciclo infinito
de vinganças. Kadaré e Girard viram bem isso.
A questão judaica parece
que desapareceu da Europa, mas em boa verdade trata-se de um tabu religioso.
Todas as épocas criaram tabus e a nossa, que gosta de se ver como racional, é
apenas por isso apenas mais cega às suas irracionalidades, salvo as oficiais. Criaram-se
como campo da irracionalidade zonas especializadas como o sexo e a morte, os velhos
«eros» e «tanathos» (dito em grego parece sempre mais científico), e ficamos mais
descansados, porque nos restantes campos parece não existir irracionalidade.
Será assim? Não sejamos
ingénuos. Não é. A nossa época lida muito mal com a (ir)racionalidade e prova
disso é impor no espaço público o insulto e a indignação. Duas formas de ódio,
dois prolegómenos da vingança.
A questão judaica é instrutiva
para a Europa num outro sentido muito diverso. O do problema de integração. Os
judeus foram as principais cobaias da integração na História recente, e dão-nos
fortes ensinamentos na matéria.
Sempre que surgem
populações de etnias diversas, surge o problema da sua integração. Os romanos,
que não eram tontos, usaram medidas muito sábias e muito brutas na matéria. A
primeira foi o morticínio. Pensa-se que na Gália foram mortos um milhão de gauleses
com a conquista de César numa população total de doze milhões de pessoas. Os
números estarão sempre sujeitos a cautela, mas bastam-nos para os efeitos que
nos interessam.
Um dos primeiros passos
para a integração é muito simples: matar. Assim de esgotam as forças do
potencial inimigo.
Outro passo é o de
federar. Foi o que os romanos fizeram com várias tribos bárbaras ao longo de suas
fronteiras.
Mas, num e noutro caso, seguiu-se
uma política não menos consciente de romanização. Ou seja, proibição de cultos considerados
perigosos (a dita tolerância pagã teve sempre limites), como se viu com a perseguição
aos druidas e aos sacrifícios humanos. Imposição da língua, do direito, de estruturas
municipais romanas, sincretismo de deuses (a boa teocrasia, para falar
eruditamente), a boa da interpretatio…
Em suma, recebe-se, a bem
ou mal, e de seguida romaniza-se. Se esquecermos a parte oriental do Império,
em que o processo obedeceu a diversas categorias, são estes os passos com as culturas
consideradas menos civilizadas.
Ora, foi este o processo
que se operou em relação aos judeus, mostrando que na Europa estes eram considerados
menos civilizados. Uns mortos, outros aceites, por vezes segregados. Mas o
período de emancipação judaica, basicamente a partir de meados do século XVIII,
e ao longo de todo o século XIX, é um período de europeização dos judeus. A
Europa não recebe rituais judaicos, os judeus abriram-se, ou são obrigados a
aprender a cultura europeia.
Primeira verificação, ao contrário
do que muitas vezes se pretende, os
judeus eram considerados um sub-proletariado subdesenvolvido de cultura
inferior. Não foi o Talmude que se impôs na Europa, mas os judeus que tiveram
de aprender a matemática, a física, a análise musical, a filosofia europeias.
Até ao fim do século XVIII, se retirarmos Espinosa e folclóricas referências a Maimónides,
o pensamento judeu, as empresas de judeus e políticos judeus são coisas que não
têm grande relevância na Europa. É com Lessing que se começam a ver judeus ilustres
na cultura.
A segunda verificação a
que somos forçados é que esta emancipação
não decorreu de um movimento de revolta dos judeus na Europa, que teriam lutado
pelos seus direitos. Os judeus eram numericamente irrelevantes, sem poder económico,
cultural ou político. A emancipação dos judeus decorre de iniciativa cristã, decorre
da generosidade dos cristãos. Não é bonito dizê-lo hoje em dia, mas tenhamos coragem
de ver os factos. Nada obrigava o pensamento das Luzes a pensar numa emancipação
judaica. Os judeus não tinham força para a impor. Foi um acto de generosidade.
A terceira verificação é
bem mais dura. Como se passou esta «romanização» dos judeus? A verdade é que a sociedade
com que se depararam era cristã. No século XIX não havia dúvidas sobre a natureza
cristã da civilização europeia. Nem Bauer nem Marx a põem em causa. Como se aculturar
numa civilização cristã quando não se é cristão, quando nos definimos
precisamente por não ser cristãos?
A verdade é que
encontramos entre as pessoas de origem judaica os maiores entusiastas pelo gótico,
pela música sacra europeia, por Bach e… lembremo-lo sem medo, por Wagner. Os maiores
apaixonados da cultura alemã e francesa encontramo-los muitas vezes entre
judeus. Mas o paradoxo é evidente. Como nos podemos apaixonar por uma cultura cristã,
ser os seus maiores arautos, e ao mesmo tempo recusar a religião? A solução foi
simples e dupla ao mesmo tempo. A metamorfose
e a ênfase.
O cristianismo é
transformado em fenómeno meramente ético e estético. Se é o Estado cristão, em
nome de princípios cristãos (como o Estado prussiano e outros tantos alemães directamente),
mesmo que em sucedâneo na forma de princípios liberais, que nos dá liberdade e
igualdade, o Estado e a sociedade cristãos são válidos enquanto ética. Da mesma
forma, se o cristianismo fez tais obas de cultura, é acolhido enquanto estética.
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