Os estádios do amor da Europa
Tema triplamente arrojado. Por um
lado porque num curto espaço tenho de fazer uma demonstração civilizacional.
Por outro, porque parece temerário aceitar a evolução de um sentimento. Finalmente,
porque parece tema que nenhuma ligação tem com o espaço público. O primeiro
problema já é corrente, o último só poderá ser respondido a final, vejamos o
segundo.
Falar da evolução de um
sentimento ainda por cima com apoio de referências intelectuais, parece puro
exercício de erudição, enfim, coisa para não levar a sério. A verdade é que a
expressão dos sentimentos, e a forma como eles são pensados, influenciam o modo
como eles são vividos. A maior consciência de raízes sexuais no sentimento pode
mudar substancialmente a forma como ele é vivido. O que as pessoas esperam do
amor, como o pretendem viver, se o associam ao casamento ou não, tudo são
questões em que o pensamento marca o sentimento. Nos países onde se lapidam
mulheres há quem se choque com o facto, e até mais porque mais próximos dos
factos. Mas só acaba o fenómeno quando a sociedade como uma todo fala, nega em
geral, afirma um princípio, ou seja, teoriza.
Na História encontramos
basicamente dois fundamentos para o amor: patrimonial e sexual. Em suma,
sobrevivência. Do lavrador que junta terras ao rei que junta reinos, ao pastor
que junta gado, por todo o mundo encontramos esta concepção da união entre
pessoas. Mais primitivamente, o desejo sexual as une. E também aqui o fenómeno
é universal. Ainda hoje em dia um e outro factor actuam, de forma mais ou menos
exclusiva em muitas culturas. Isso não impediu que nessas culturas se tenha
sentido o que para nós europeus é o amor. Mas não encontramos teorizações e em
consequência reivindicações de formas especiais de amor.
De modo grosseiro, encontro na
História europeia vários estádios do amor.
Com Platão o amor assume dimensão
cósmica e metafísica. Não é vivência que interesse apenas dois seres. Revela as
fundações do cosmos. Esta tendência já se encontrava em certas correntes
mitológicas gregas em que Eros é o primeiro deus, o primogénito.
Com o cristianismo, a segunda
grande fase do amor, dá-se mais um passo, e não pequeno, e não pouco absurdo,
se bem virmos. O próprio Deus é amor. Já não é só o que é, nem o Deus justo e
misericordioso do islão, Deus é Pai (isso os indo-europeus já sabiam) e é amor.
Na sequência disto as igrejas cristãs impõem a liberdade matrimonial, que não
existe noutras culturas. É evidente que em cada época esta liberdade sofreu muitas
entorses. Mas o princípio está lá. É diferente ter uma sociedade que impõe o
casamento e uma religião que não impõe, do que ambas o fazerem.
A terceira grande fase abre-se
com a poesia trovadoresca. A mulher passa a ser o centro do amor. É amada não por
ser objecto, mas por ser superior. É ela a força motriz do amor e o homem
faz-se dela seu servo. Cristianismo, herança clássica alimentam esta corrente.
A quarta fase começa com o
romantismo. Pela primeira vez dois seres se escolhem um ao outro. O amor é
escolha de duas pessoas, fora das convenções sociais, contra elas se
necessário. Fundante do amor em geral, mesmo fora do casamento, é a escolha que
o homem faz da mulher e a mulher faz do homem. E o romantismo bebe tanto do
helenismo, como do cristianismo como do paganismo celta e germânico (e eslavo
nos países do leste europeu).
A quinta com a psicanálise. As raízes sexuais do amor vêm
ao de cima. Que elas sempre existiram não é novidade. Mas passou-se a falar
disso. E teve de se ir aos gregos para o compreender.
É evidente que cada uma destas
fases não se reduziu a estas características e muitas distinções se têm de
instalar em cada uma e de permeio. Mas o que ficou como lastro delas foi o que
me preocupou enunciar.
Nada menos natural que o amor. Se
há ponto onde há construção cultural é nele. Oferecer flores, dar prendas,
cortejar, tudo são formas culturais. Mas também o que se sente, o que se espera
é cultural. Ainda há poucos anos amar a mulher porque era boa dona de casa não
era figura de estilo. E ser ela “desmazelada” era justificação de desamor. Não
se diga por isso que o amor não é cultural. Tente-se dizer a um turco que o
amor atravessa fronteiras, é contra convenções sociais. Alguns europeizados, e
só na medida em que o sejam, concordarão. Mas também marroquinos, chineses e
assim por diante. Ou seja, só na medida em que adquiriram mestiçagem cultural,
que receberam de uma cultura que não é a deles.
Poesia de amor existe-a bela em
todas as culturas, uma ideologia de libertação pelo amor e do amor só encontra
consistência histórica na Europa. A Europa é civilização de liberdades. O
grego, o europeu desde sempre se sentiu o livre em contraste com o oriental, o
árabe, o turco. Em suma, os submissos.
Que interessa o que digo para a
Europa política? É que é o que subtende à política que a sustenta. A política
não assenta no vazio. Gostaria que experimentassem impor à França do século
XVII uma democracia parlamentar. Todos em bloco a recusariam. Tentem fazer uma
constituição criando o país Portugal-Marrocos. Apenas um pedaço de papel. Sem
sustento prévio nenhum projecto político funciona.
Esse sustento é simbólico,
afectivo, e – imagine-se – também teórico.
Mais uma vez vimos que a Europa é
a fusão do paganismo indo-europeu e do cristianismo. Cada uma das fases tem
marcas ou de um ou de outro, ou de ambos. Cada uma delas se acumulou formando
estratos que ainda hoje se encontram de uma forma ou de outra. Quem considerar
que o que digo é no fundo dispensável, arbitrário ou mera elaboração teórica,
que tente defender em público que a relação entre um homem e uma mulher é
apenas agarrar os cabelos da mulher e arrastá-la para uma gruta ou então que
serve apenas para juntar patrimónios. E que faça esta defesa com convicção.
Verá a reacção. Sobretudo, se for convicto nesta visão de mundo, verá como é
vazia a sua vida.
Muitos sentimentos apenas têm
valor porque nos lembramos deles. Se esquecemos completamente a dor de uma
perda ela actua menos na nossa vida pelo menos aparentemente. E a vida é muito
diferente quando podemos deles falar ou deles falamos de uma ou de outra forma.
A tragédia de sentimentos oprimidos é uma constante em todas as culturas.
E quem quiser fazer projectos
políticos esquecendo que o homem é mais que mera técnica, que ninguém acorda
feliz por ser democrata, por viver numa economia de mercado ou ter “acquis
communautaire”, apenas por isso, deixa para os outros como herança o governo de
pulsões sem enquadramento, sem sustento, sem base. Não o preocupa. Em geral é
destituído de amor. Ou pelo menos daquele que a Europa criou. Talvez porque não
seja amado.
Alexandre Brandão da Veiga
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