Ouçamos com ouvido atento, mesmo que ferido por tão dissonantes melopeias, o que diz o transeunte. Como os homens públicos são hoje em dia os filhos das compoteiras, transeuntes relapsos, ouçamos o que nos dizem mais uma vez. “Temos de ser abertos, temos de ser flexíveis”. São duas versões de uma mesma cantiga, a primeira mais de uso na cultura, a segunda mais na gestão pública e privada, ambas na política.
A primeira pergunta que se nos oferece é a seguinte: quem disse isso? Quem se atreveu a impor tal imperativo moral? Quem lançou tal boato?
A segunda questão que se nos deve colocar é a do paradigma que subjaz a estas ideias. A ideia de abertura, por mais que custe a quem me ouve, tem o seu assento na metafísica, a da flexibilidade na biologia. Mais uma prova de que o homem público recolhe vindo não sabe de onde conceitos que na sua boca mais não são que rumores, porque rumor é tudo de onde não se sabe a origem.
Existe um ditame que afirma que perante uma garrafa uns dizem que está meio cheia, outros meio vazia. Imagem impressiva, mas em última análise grosseira, porque se esquece que a melhor visão é a de que vê que metade terá dado prazer e a outra metade ainda poderá dar satisfação. São os cultores da abertura quem mais o cita, o que mostra a rigidez da sua visão.
A abertura ganha relevância intelectual sobretudo com Heidegger. Antes dele ninguém se atreveria a dizer com ar solene que temos de ser abertos, sob pena de os interlocutores acharem que o autor de tais palavras pretendia ser objecto de cirurgia ou teria desejos mais ou menos inconfessáveis. Não querendo comparar os medíocres imitadores com o genial persuasor, a verdade é que no pensamento actual a abertura recolhe todas as pudicícias do pensamento de Heidegger. Ao ver a existência como abertura, na mesma esteira em que dizia que nunca poderemos atingir o centro da clareira (pois não, é uma inevitabilidade estarmos nele), o católico Heidegger, católico arrependido, pudibundo em relação à sua matriz, lançou uma semente de infantilismo que o mundo seguiu com alegria.
Aberto por excelência é o recém-nascido. Mais nenhuma idade da vida tem tantas possibilidades abertas. Porque a abertura é flutuar nas possibilidades, e não persistir nas realizações. Um recém-nascido pode ser das coisas mais ternurentas do mundo, mas é um incapaz, tenhamos a coragem de o reconhecer. Não se pode contar com ele para nos proteger, para nos sustentar, para ser um esteio da nossa vida. É evidente que seria demais exigir tal coisa de um recém-nascido. Mas quando adultos vivem só na abertura, abertos para o mundo, atiram-se a possibilidades apenas como forma de não terem de responder pelas suas realizações. Basta-lhes dizer que são abertos para se sentirem imediatamente no direito de serem absolvidos pela falta de qualquer obra.
Em termos militares é o que se chama uma diversão. Desvia-se a atenção dos outros para a nossa nulidade presente e passada mostrando o infinito de possibilidades que está à nossa frente.
A prova da imensa má fé deste tipo de atitude é que realmente acabam por ser abertos. Mas, destituídos, ainda e sempre de critério, acabam por estar abertos para o que de mais medíocre, indigno, trivial, tem a existência humana. Como o excelente carece de escolha dura, é-lhe mais fácil manter uma atitude de abertura. Sem mais. Mas quem está nesta atitude está parado, não deixa lastro, é mero destinatário da sua própria inércia.
Abertos sempre a outras culturas para as quais esperam que ninguém tenha competência para os julgar, abertos para outros modos de vida que não se dão ao trabalho de estudar. O homem pura e simplesmente aberto é o herdeiro tonto do cristianismo. Não recebe os publicanos e as prostitutas porque recusa uma pureza meramente ritual, ou como acto de amor. Recebe geralmente só publicanos e prostitutas porque em boa parte sabe que eles não o podem julgar, porque isso lhe dá um sentimento de superioridade.
Porque o adulto é sempre alguém que fechou possibilidades. Escolheu uma profissão e não outra, um parceiro e não outro, uma aprendizagem e não outra. Se for equilibrado, e sobretudo se for completo, manterá sempre o maior grau de abertura compatível com a realização de obra. Mas quem faz uma casa não pode ao mesmo tempo estar a jogar xadrez.
A flexibilidade tem o seu paradigma na biologia. No entanto, os animais superiores são-no exactamente porque têm zonas de flexibilidade e outras de dureza. Se os ossos fossem apenas flexíveis não nos moveríamos: arrastávamo-nos, ou melhor, esparramávamo-nos.
Não deixa de ser curioso que as pessoas que mais invocam este argumento sejam pessoas sem grande coluna, sem grande postura moral. Invocam como imperativo categórico o que nelas é uma inevitabilidade, o que mais não podem ser. Dão-se o mérito de uma naturalidade de invertebrados, quando essa naturalidade é apenas sinal de impossibilidade de escolha de melhor.
Desçamos um pouco à terra, ou melhor, falemos agora na linguagem chã do homem público para que ele perceba alguma coisa.
Quando se fala de uma Europa aberta, de uma Europa que deve ser aberta, sou o primeiro a concordar. Mas na medida em que seja aberta mas concentrada nas suas realizações, ou seja, fechada igualmente. Adulta, portanto. Uma Europa aberta não significa abrir-se ao ponto de receber os países deserdados da História só porque o são, só porque conseguiram o ódio ou o desprezo dos vizinhos como único legado histórico e quando muito a piedade da Europa. Quando se diz que temos de receber toda a miséria do mundo quando os Estados Unidos, a Austrália e o Canadá escolhem criteriosamente quem para eles emigra. Quando temos de estar abertos a qualquer indignidade desde que coberta por tradições mais ou menos vetustas, que o são apenas por falta de imaginação dos povos que as consagraram. Quando ao mesmo tempo estes que se dizem abertos, abrem-se ao sofrimento dos animais e a outras culturas que lhes provocam o sofrimento e vivem assim nessa abstrusa contradicção. Quando se diz que temos de ser flexíveis e aceitar entorses às leis, desvios em relação a planos equitativos e bem planeados, apenas porque nos temos de adaptar à realidade. Como se a realidade não fosse também qualquer coisa que tivéssemos o poder de adaptar às nossas exigências.
Quando se diz tudo isto em nome da abertura e da flexibilidade, e no espaço público vemos invocar tamanhos dislates, podemos perceber qual a alma e a anatomia dos defensores de tais despautérios. Infantilizados mimando recém-nascidos, merecendo-nos a mesma confiança que temos nos bebés, e menor ternura, esparramados na sua própria inércia, os flexíveis e abertos são apenas criaturas que fogem às suas responsabilidades, que traficam com influências porque para eles a vida é apenas tráfico. Entre os grandes não vemos nem essa abertura nem essa flexibilidade. Vemos antes teimosos, obstinados. Carlos Magno, Alexandre, César, Henrique IV, De Gaulle, Churchill negociaram com a realidade, adaptaram-se a ela, mas antes do mais forçaram-na, recusaram ser abertos ou flexíveis. Perante inércias ou iniquidades, jogos de interesses instalados e livres expressões de outras culturas, impuseram um paradigma, porque o julgaram, porque o sabiam melhor. Serôdios herdeiros de um cristianismo mal digerido, instalado em almas pouco preparadas para criticar a sua má aplicação, os abertos e flexíveis apenas sabem construir obra à sua imagem: mole, irrelevante, fugaz. O seu paradigma é Pasqualis que se opôs a Carlos Magno. Quem se lembra dele? Apenas os mesmos que se lembrarão de Carlos Magno em estudo minucioso. Por comparação entre o grande que exista ou venha a surgir, o mero contraponto da mediocridade sorridente.
Alexandre Brandão da Veiga