terça-feira, 5 de março de 2013

O que é a tolerância?

O espírito impositivo, normativo e dictatorial dos bem-pensantes tende a cortar o mundo em metades. De um lado há a tolerância e do outro há tudo o resto. O que seja a tolerância está definido por esses benfeitores da humanidade de singelo pensamento e não pode ser objecto de discussão. A sua concepção do ser humano é hirta, inamovível, pétrea. Por sorte o ser humano é infinitamente mais rico do que querem os ditadores da moda. É que não se pode dizer que de um lado há a tolerância e do outro a intolerância. Há muitas formas e muitos motivos para se tolerar e para não se tolerar. Existem mesmo coisas que são intoleráveis. Veja-se por exemplo a intolerância dos tolerantes oficiais.

Acresce que a tolerância é vista como uma forma de superioridade moral, e por isso tem de ser também analisada segundo esse crivo.

“Tula” em sânscrito é balança, esta palavra é prima de”tollo”, suportar. A tolerância é sempre o reconhecimento de um peso. Os outros pesam-nos, as coisas podem-nos pesar, as ideias de outrem pesam-nos. Christophe de Voogd na sua “História dos Países Baixos”, o país com mais experiência na tolerância, lembra que o neerlandês tem três palavras para a tolerância: Verdaagzaamheid, a verdadeira aceitação do outro, Onverschilligheid, a indiferença e Gedogen, o deixar andar, que vai do sentimento de impotência ao interesse económico.

A complexidade da tolerância, que no caso europeu em acréscimo assume teorização imensa durante e depois das guerras de religião (desde Erasmo pelo menos), exige que tenhamos alguma ordem, por forma a ver que coisa é esta que parece dar tanta superioridade moral e civilização a outras culturas que não a europeia.

Para isso temos de distinguir quem tolera, o que tolera, como tolera e porque tolera.

Quem tolera? Só se é tolerante se se tem um referencial absoluto. Referencial através do qual o que está fora dele é mau, ou pelo menos não tão bom. Um relativista puro não pode ser tolerante. Cabe-lhe melhor a indiferença. Quem defende o relativismo das civilizações não defende nenhuma tolerância, mas apenas a indiferença, ou escondido sob o olhar tartufo, o ódio à sua. Por isso quando alguém afirma que é relativista e tolerante ao mesmo tempo, apenas está a praticar desporto de empilhamento de auto-elogios, mas nada fez em coerência de discurso.

O que se tolera? Só se pode ser tolerante com o que não se gosta. Quem se converte ao nazismo não é tolerante com é ele. É simplesmente nazi. Quem admira o Islão não é tolerante, gosta dele. O politeísmo não é tolerante: é apenas absorvente. Quando o romano fala dos deuses celtas dando-lhe nomes romanos faz apenas obra de transposição. Não é tolerante. Quando Alexandre Severo coloca Cristo no seu santuário junto de outros deuses não é tolerante, é apenas sincrético. Quando o muçulmano diz que venera Jesus e Maria porque o alcorão lhe diz para o fazer não está a ser tolerante, mas apenas a obedecer a um comando da sua religião. O espaço possível da tolerância é tanto maior quanto menos gostamos das coisas ou das pessoas. Por isso quando mais se diz que uma cultura tolera muito, mais significa que é vasto o campo de coisas de que não gosta. Quem muito tolera, muito detesta. Se tem razão nisso é outra questão. Mas deve-nos suscitar alguma reserva tanta tolerância.

Como se tolera? O como é sempre um abaixamento do nível de violência possível, na medida em que haja tolerância. Mas não o fim da violência. O como da tolerância exige sempre uma medida e uma comparação – com o que existe noutras culturas ou noutras épocas. A estrela de David amarela imposta aos judeus, criação muçulmana, é considerado símbolo de tolerância quando se passa no mundo islâmico do séc. X, mas de intolerância na Inglaterra medieval do século XII e símbolo máximo de intolerância no século XX. Mesmo que os critérios sejam pouco honestos, a verdade é que o princípio está correcto. O fuzilamento é símbolo de maior tolerância que a morte por empalamento ou pela roda. O problema é que menor violência é conceito relativo. É muito difícil medir até que ponto uma humilhação permanente é menos dolorosa que a tortura física pontual. O indígena africano cujo animismo era tolerado pode ter sido mais humilhado que o que foi morto em combate. Da mesma forma quando a república turca dita laica impõe impostos especiais aos não muçulmanos nos anos 40 do século XX estará a ser mais tolerante que na época do genocídio dos arménios e assírios. A verdade é que a tolerância é sempre uma medida de violência. Por isso é sempre expressão de agressividade, mesmo que minorada.

Porque razão se tolera? Aqui os paradigmas podem ser múltiplos e misturados entre si. Pode haver interesses económicos nisso. Pode-se pura a simplesmente ganhar dinheiro com a tolerância. A praça de Londres recebe católicos e mais tarde muçulmanos apenas por dar dinheiro. Ou então tolera-se o insignificante. Os mazdeístas são tolerados no fundamentalista Irão porque são poucos. Porque se considera insignificante do que não se gosta. Reduzidos a 50 mil os cristãos da Turquia são considerados inofensivos, apesar de ainda estarem longe de serem realmente tolerados. Como se em Portugal houvesse 7200 muçulmanos ou em França 40 mil muçulmanos em vez de cerca de 5 milhões. Nem se daria por eles. Pode tolerar igualmente porque se quer pacificação social. Exactamente pela razão inversa da anterior. Porque geraria conflito não tolerar. A Turquia mal ou bem tolera uma minoria alevi porque corresponde a 25% da sua população. Da mesma forma a maioria hindu tolera a minoria muçulmana porque corresponde a mais de 10% da sua população.

Pode-se tolerar igualmente por necessidade estratégica. Na Arábia Saudita é proibido entrar com um crucifixo ao peito, mesmo que escondido. No entanto, nas bases americanas há capelas. Do que não se gosta é evidente, porque se não goste também, a motivação por que se tolera está longe de ser nobre. Pode-se tolerar por esperança de conversão. A região europeia de mais longa e constante tolerância do judaísmo é Roma, em grande parte porque o papado tinha esperança de conversão dos judeus. Mas hoje em dia muitos toleram o Islão dentro de Europa porque esperam a sua conversão à democracia, à economia de mercado, ao irenismo mole e outras constelações religiosas mais ou menos superficiais em que se baseiam.

Porque se respeita o ser humano apesar de se odiar as suas ideias. Ou porque se admite que a verdade tem uma dimensão dialéctica. É difícil destrinçar a motivações. Pode-se tolerar por fundamentos dialécticos. Se a motivação é dialéctica pode ser de mero jogo, sem nenhuma seriedade, a paisagem humana é mero espectáculo lúdico. Os outros seres humanos são meros instrumentos do seu prazer. Se a motivação é o ódio a certas ideias, mas o profundo respeito pelos seres humanos, talvez a tolerância seja um belo conceito, mas talvez só aqui.

Em suma, a tolerância nasce sempre de um amor ferido, sustentado por um absoluto que aceita viver com o que não gosta diminuindo a sua violência contra ele pelas mais diversas razões. É o vazio da admiração e raras vezes convive com a simpatia e o respeito e apenas abunda onde o relativismo está ausente.

Michael Soubbotnik, um estudioso do pensamento político da Europa Central em arguta observação lembra as profundas afinidades que existe entre a tolerância e a resistência à tirania, porque em ambos os casos as ideias nasceram do apelo à consciência individual perante Deus. Um regime que não admite o direito de rebelião contra si é intolerante por definição. É o que acontece com o actual modelo de democracia que se quer impor na Europa. Entre guerras tolerámos ideologias que queriam destruir a própria democracia, como o comunismo. Hoje em dia contestar uma Europa baseada apenas em critérios moles e meramente técnicos como a democracia, economia de mercado direitos do homem e instrumentalidades quejandas é visto como blasfémia. O príncipe da Idade Média e Moderna admitia a teorização contra o tirano. O actual príncipe suporta-a muito menos. Sinal de aumento da intolerância, e de que apenas o intolerável começa a ter direito de cidade.

Entre a grandeza de um São Bernardo de Clairvaux ou de Santo Ambrósio e a tolerância mole e desistente de alguns dos monges seus vizinhos que não deixaram nada para a História a escolha é simples de fazer. Tolerar o huno às nossas portas muitas vezes mais não é mais que sinal de desistência ou mesmo traição. Não tolerar o indigno, como fez Antígona pode ser sinal da maior coragem. Não tolerar a submissão como fez o príncipe Eugénio de Sabóia pode ser sinal de maior humanidade. Denunciar, recusar o intolerável não é afinal passagem para a irrelevância histórica.


Alexandre Brandão da Veiga



2 comentários:

Táxi Pluvioso disse...

Todos são tolerantes se não tiverem outra hipótese, se ninguém estiver a ver, tocarão o sino para morrer o mandarim na China. bfds

miguel vaz serra....... disse...

Quando a tolerância passa a ser passividade baseada numa estupidez genética, dizem os dicionários europeus, significa povo português.
Nas Monarquias Absolutistas era porque não tinham hipóteses.
Na 1ª República era por não saberem contornar a democracia já que se instaurou à custa duma carnificina monstruosa, num duplo assassinato de dois seres humanos mesmo em frente a uma mulher que vê morrer o marido e o filho duma só vez, salpicada de sangue dos mesmos.
No Estado Novo era porque a Ditadura era muito forte....Tão "forte" que Cunhal tirou o curso de Direito na prisão. Entretanto na mesma época na União Soviética tiravam o curso de chumbo, encostados à parede contando as balas do batalhão de fuzilamento!!!
E.....e agora? É porquê? Tolerância...Palavra estranha quando falamos em Portugal e na sua História.