Preconceito, mente aberta e limitações
Habituados que estamos a repescar pelas esquinas o que a plebe vai cochichando, entendendo que onde mais esquinas há existem hoje em dia universidades, ministérios e centros culturais, e por plebe o que invade o espaço público, podemos ouvir com algum sorriso o que por lá se vai dizendo.
Uma das frases mais ouvidas é a seguinte” eu não tenho preconceitos, tenho mente aberta, procuro ver as coisas sem limitações”.
Como os gregos nos ensinaram, uma das formas de ver lucidamente as coisas é ver os seus fundamentos, a sua forma, os seus efeitos e as suas finalidades. Para o leitor mais atento facilmente se reconhece aqui algo próximo da teoria das quatro causas de Aristóteles.
Vejamos os fundamentos deste dito popularucho. Porque diz a plebe que tem mente aberta? Porque tem memória de as antigas classes dominantes viajarem. Ou os peregrinos. Quem viajava estava rodeado de uma aura especial. Ou era senhor, que partia para a guerra ou para o matrimónio, ou era aventureiro cruzado, peregrino que via o que era mais importante ver: Roma, Jerusalém, Santiago de Compostela. O que viaja viu outras coisas, não é o que fica preso à gleba, ao pedacito de terra em que se instala o servo, o simples agricultor. O fundamento desta frase é medieval e mesmo antigo. Quem diz que tem mente aberta está a dizer que não é servo da gleba, mero sedentário sem alternativa. Diz-se nobre ou peregrino, pronto para a viagem.
Mas qual é a forma que adopta para fazer essa viagem que lhe dá tanta abertura? A do turismo. Quem o afirma é geralmente consumidor passivo de viagens pré-formatadas, com destinos bem seguros. Faz as vacinas impostas por lei quando viaja para países com risco de malária e não larga nunca o guia turístico. A sua abertura está enquadrada por padrões pré-definidos, em que o risco é reduzido ao mínimo. Abre-se ao mundo, mas desde que o mundo seja feito à sua imagem e semelhança. Exagero meu? Entre as pessoas ditas abertas que encontramos? Procuremos entre elas os grandes estudiosos de hieróglifos, de sânscrito, de grego clássico. O vazio. Tentemos ver entre essas pessoas ditas abertas se se abrem à História do cálculo infinitesimal. Nada veremos. Ou as que se abrem ao estudo do Madhyamika... Nem sabem o que isso é. A que se abrem estas pessoas? Ao que já está aberto, disponível. A forma é da abertura própria, mas não alheia. Não abrem tesouros escondidos porque já se consideram um tesouro escondido. Quem se diz aberto é em boa verdade quem se considera um tesouro por explorar. Forma presunçosa da modéstia pública.
Quais são os efeitos desta abertura? A passividade, para começar. Sendo eu aberto, basta-me esperar sentado o vento que passa. Pode ser que este me atire à cara uma banana caída de alguma árvore. Mas numa cabeça totalmente aberta entra todo o disparate. Aberto a tudo, tudo lhe entra, aceita sem critério. Um dos outros riscos de se ser demasiado aberto é que quem o é não retém as ideias. Assim como elas chegam, assim se vão embora. Por isso, o homem dito aberto não tem noção da consistência, da coerência. Defende uma coisa e a sua contrária, mas nem tem consciência de o estar a fazer. É natural. Porque a coerência é sempre o resultado de uma procura e não de uma passividade.
E quais as finalidades desta abertura? É que a pessoa que se diz aberta não tem de se comprometer. Ouve uma parte e a outra, mas termina sempre o seu discurso por um non liquet, uma indecisão. Não sabe. Parece ser assim modesto. Mas impõe aos outros que não saibam. Se ele não sabe, mais ninguém pode saber. Ele é aberto e todos os outros têm de ser abertos... como ele. O homem aberto é antes do mais um pequeno ditador. Sentado numa cadeira do seu alpendre, fica ofendido quando outros lhe dizem que há outras formas de vida, em que se calcorreiam as ruas.
Quando Marco Pólo chegou da sua viagem pelo Oriente contou que havia sociedades matriarcais, e outras em que era de boa educação oferecer as mulheres aos visitantes. Foi dado como ridículo e mentiroso. Da mesma forma a pessoa de “mentalidade aberta”, aceita relatos de viagens, mas apenas se a confirmarem na razão. Se dos relatos alheios constar a glória de sociedades mais fechadas, ou conclusões que lhe desagradam, rapidamente vira a cara, ou se ri, ou condena por blasfémia. A criatura sem preconceitos é o herdeiro do transeunte de Veneza, fascinado com o exótico, mas descrente de outras reais possibilidades de vida.
Ortega y Gassett dizia que um homem sem preconceitos era um orangotango. Nenhuma pessoa realmente culta se posta perante o mundo com olhar virginal. E quem o pretende apenas está a querer esconder a sua ignorância sob a capa da abertura. Quando ouço criaturas afirmar que não querer um país asiático na Europa é questão de preconceito temo bem que nos mais altos postos do Estado tenhamos... orangotangos.
Da parte que me toca eu sou muito limitado. Os gregos também o eram e isso não os prejudicou, a avaliar pelos resultados. Antes de me expressar, antes de julgar, rodeio-me de limitações. Sem isso não há justiça possível. Tanto o juiz como o cientista limitam os factos que são relevantes, definem um método, vinculam-se às conclusões. Toda a ciência e a justiça, bem como a melhor filosofia, releva de limitações. Se alguém estabelece o ser como o centro da sua especulação, tem de trabalhar com essa limitação. Quem se atreveu a ler a Crítica da Razão Pura facilmente repara que aquela imensa obra é um contraponto, uma arquitectura de uma ou duas questões dadas como fundamentais, como uma máquina de uma infinita limitação. É evidente que a criatura de mente aberta recusa isto. Porque a sua mente é lassa, não aberta. O esforço de concentração é-lhe penoso, cansa-se com facilidade, e quer impor o seu cansaço como paradigma de todo o julgamento. Como juiz absolveria porque é mais prático, mas estaria igualmente disposto a condenar sumariamente se fosse mais simples. E fácil perante o contexto social.
Mas são assim tão abertos estes espécimes? Fecham os olhos, quando algo lhes afecta a passividade. São passivos e reaccionários. Se além lhes mostra um site de uma embaixada oficial do Estado turco na Dinamarca a fazer propaganda ao Islão como “a mais perfeita das religiões”, fecham os olhos e continuam a dizer que a Turquia é um país laico. São repetitivos, fechados em círculos de que não saem.
Que implicações tem este espécime na política? Como se comporta esta fauna na arena pública? Começam por ser desistentes. O paradigma da sua política é o da desistência e do conformismo. Discutem o que se aceita ser discutido. Os temas, os tópicos argumentativos que aceita, são os que se vão recolhendo na praça pública. Está ansioso por receber Marco Pólo, mas não por viajar. E recebe-o com desconfiança, desprezo e inveja mal disfarçada.
Continuam sendo arbitrários. Sem limites, tudo lhes é permitido. Mas sem preconceitos conscientes nada lhes é sindicado. Não é por acaso que idolatram culturas primitivas, e quanto mais indiferenciadas sob o ponto de vista sentimental, mais enlevados ficam por elas. Aceites pela democracia, necessitando dela para poderem florescer, não contribuem para a mesma, são seu parasitas. Postam-se em alpendres a ver indignidades e tudo pelo facto de ser espectáculo lhes merece o respeito. Só porque se posta à sua frente.
Finalizam sendo tirânicos. A sua mente não é aberta, mas apenas ponto de passagem de correntes de ar. Têm menos preconceitos e por isso mais enquistados e difíceis de extirpar, mais atávicos. São em boa verdade apenas limitados, não tendo por isso que se impor limites. Apenas se impõe limites quem se sabe apto para o infinito, e quem com ele se confronta.
É esta fauna que deixámos invadir o espaço público. Deixámos incautamente abrir as portas da cancela e a maralha tirânica invadiu o espaço da seriedade. Manada desembestada que destrói tudo no seu caminho, fruem de uma liberdade que não conceberam, e que são incapazes de sustentar. Esquecem-se que a liberdade começou no dia em que alguém se conteve, porque sendo mais forte não se impôs. Impôs-se limites, em suma. Tiranetes produzidos pela democracia, idolatram-na por necessidade de sobrevivência. Enquanto vão criando o espaço para toda a espécie de desvios à mesma.
Alexandre Brandão da Veiga
5 comentários:
E a plebe, essa que aproveitou o conceito de "Democracia" para "tiranear" e "ditadorear" como recentemente tivemos na "reencarnação" tão horrífica como trágico-cómica de Sócrates..Há quem diga até que nunca existiu pois tudo teria sido escrito por outros.... Este existe e viaja ele também muito.
No caso português a ditadura parlamentar de quase 40 anos, mergulhou o País numa crise existencial, económica e financeira tal, que para engordar certos marginais políticos e amigos de, deixaram o povo(inho) de tanga.
Nem San-Tiago nos salvaria num conjuro de parceria com a Virgem de Fátima. Apareceria logo um Relvas sem máquina que o apare, para fazer uma concessão à medida de algum amigo para os lados de Leiria.
Pobres humanos..
Coisas tão claras e tão fáceis de cortar pela raiz e o povo nada faz...
Vivre la Liberté!!!
Belo post! Na verdade, a ignorância é muito atrevida. Fixo: «A liberdade começou no dia em que alguém se conteve porque, sendo mais forte, não se impôs». Bravo!
Aprende-se mais nas esquinas do que nas universidades, isso é um dado cultural. Pensar que o Marcelo Rebelo de Sousa é professor dá logo vontade de anular a matrícula. boa semana
Para quê matricular-se?
Basta passar no Campo Grande que dão canudos ao primeiro que se ponha a jeito.....
É a beleza da santa ignorância, essa sim atrevidíssima, que os leva ao poder.
Outros há que dizem que o actual PM é o melhor desde Sá Carneiro e em dois meses são Administradores da quase destruída RTP.
Se foi para isto que "alguêm se conteve porque sendo mais forte não se impôs", devia ter imposto!!!
No fundo, há que dar razão a Tolstoi quando dizia que a opinião vulgar era o resultado do orgulho, preguiça e ignorância.
E é por isso que S. Bernardo de Claraval escreveu que os dois inimigos do homem são a vontade própria e a opinião própria.
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