Razão e paixão
Até ao fim do século XVIII quase unanimemente os pensadores europeus defenderam a razão contra a paixão, ou melhor, as paixões. Desde o romantismo que isso não acontece. E como em boa verdade ainda bebemos, para o bem e para o mal, do romantismo, hoje em dia não se pergunta pela defesa da razão sequer. Onde está a razão então? E porquê tanto afã em defendê-la contra as paixões? Que receios provocava a paixão?
Vejamos a última questão em primeiro lugar. Porquê tanto afã? O lugar comum é o de se dizer que existia uma cultura racionalista, como se isso fosse uma limitação, como se não tivessem percebido – os pobres coitados! - que havia outras coisas para além da razão. Este é evidentemente um modo de ver as coisas muito pobre. Se temiam as paixões é porque tinham muitas, porque estavam em contacto com elas de forma mais directa, mais intensa, que nós. Não nos podemos esquecer que falamos de pessoas que viram a morte ao seu lado, por duelos, por execuções judiciárias, por doença, por guerras. Raros foram os pensadores até ao século XIX que não assistiram a nenhuma guerra, que não viram o que era um corpo humano ser dilacerado pela tortura, os maus-tratos, a fome, ou simplesmente a desconsideração social. A miséria e o sofrimento humano para essa gente era uma lei natural, que existia em toda a parte do mundo, em todas as culturas, em todas as épocas. Não tinham exemplo dessa construção maravilhosa e pesada que é o Estado-Providência. Providência para eles era apenas a divina, que se instilava sobre a forma natural das desigualdades e sofrimentos humanos universais.
Escolher a razão era para eles escolher o contrário do sofrimento, sobretudo do sofrimento infligido pelo homem ao próprio homem.
Com o romantismo estamos perante uma sociedade mais segura dela mesma, talvez a mais segura dela mesma que já existiu na História humana, só tendo paralelo na época dos Antoninos em Roma e de Péricles em Atenas, que seja de nossa memória (esquecemos tonteiras presunçosas que ocorreram em vários impérios asiáticos, mas mais por falta de exigência, como na Turquia, entre os assírios ou na China). Segura exactamente porque viu triunfar mecanismos desenhados pela razão. O direito internacional, as garantias mínimas de liberdade, a possibilidade de promoção social, o início da segurança social. Ao longo do século XIX toda a armadura que hoje constitui a almofada da nossa existência foi formada. Foi a razão que pacificou o homem, que lhe diminuiu o sofrimento, pela ciência, pelas tecnologias, pelo consenso racional.
Mas como todos os garantidos, os enfardados, os europeus ficaram meninos estragados com mimos. O espaço criado pela razão torna-se “natureza”, é natural” termos a almofada de existência que temos, e isso enfada. Começámos por isso a brincar com o fogo, pudemos dar-nos a esse luxo. O inconsciente, o mito, a irrazão, a experiência sem limites, tudo poude ser experimentado, vivido. Se o poude, apenas o poude ser porque a razão tinha construído um espaço em que não era perigoso experimentar. Atear um fogo em ambiente controlado, que é o que em suma fazem os cultores da irrazão, não releva afinal de uma grande coragem. Exigem bombeiros de toda a espécie que podem apagá-lo – julgamos nós.
Mas para onde foi habitar esta razão que maltratamos tanto na nossa cultura? Onde se abriga ela?
Mais uma vez, no Direito para começar. Cultivamos, incensamos a irracionalidade, mas exigimos que o espaço das relações internacionais, da conformação social interna, sejam regidos pelo Direito, ou seja, pela razão que se auto-controla. Queremos tribunais para julgar os homens, os políticos, a História igualmente. O que antes recebia condenação por razões religiosas é agora assepticamente relegado para os tribunais que aplicam um Direito supostamente universal. O problema é que nos esquecemos que levámos séculos a estabelecer consensos que são europeus, só europeus, que exportámos para as culturas neo-europeias como as Américas, a Oceânia, alguns países africanos. E queremos converter o mundo inteiro a consensos que para ele não fazem sentido, por ignorância, limitação, mas também por falta de identificação histórica.
Para a ciência, igualmente. Queremos inutilmente que a ciência cure já e desde logo todas as ciências, que os nossos percursos pela irracionalidade nos deixem incólumes. Queremos brincar com o fogo, mas não aceitamos que nos possamos queimar, sobretudo de forma incontrolável.
Para a política e a economia, finalmente. Queremos que as políticas sejam eficazes, que nos inventem emprego, riqueza, novas formas de vida. Que a política se faça de paradigmas bem polidos e lógicos, sem contradições. Nunca época houve em que as contradições nos políticos fossem objecto de tanto escárnio e no entanto, poucas houve que deram tão poucas alternativas a essa incongruência.
A razão deixou de ser motivo de amor, de cuidado. Compreende-se. Por um lado, porque estamos instalados nela. Os gregos podam amá-la porque ela era fresca, novidade, alargamento da consciência. Onde estavam instalados, como Dodds bem demonstrou, era um espaço de irracionalidade. Na nossa Idade Média (todos os países europeus a tiveram, quem não a teve não é europeu, digo-o sem medo de ser temerário nas minhas afirmações) homens cobertos de paixões eram-no também de sentido religioso e amavam a razão por isso mesmo. E aqui vemos a outra causa da perda do amor à razão: a falta de religiosidade. A razão é planta que carece de cuidados, ao contrário da irrazão que cresce como planta selvagem. Gente descuidada é por definição irreligiosa. E tem em horror a razão.
O problema dos amantes da razão é sempre o da incompletude do discurso, mas porque a outra metade de que falam é-lhes suficientemente vívida. Têm vidas mais completas que o seu discurso. Os cultores da irrazão têm com frequência o problema contrário: o seu discurso é mais rico que a sua vida. Vão beber à razão para a contestar, assentam confortavelmente nela para a maltratar. Os cultores da razão, pelo contrário, sabem que assentam em terreno mais movediço, a vida na verdade, e por isso cultivam um jardim que carece de cuidados para não morrer. São provedores, não fruidores.
É evidente que os cultores da razão podem ter taras. Têm-nas quando perdem a religião. O laicismo francês, e o utilitarismo inglês, o materialismo alemão e russo, formas de gloriosa mas em geral triste obscenidade na cultura europeia pecaram por julgarem que a razão em que assentavam não tinha História, não era movediça, e que correspondia ao mundo todo. Nesse caso o discurso podia ser erudito, mas era tão pobre quanto a sua vida.
Dois episódios são significativos deste fenómeno. Estaline não queria a física quântica porque lhe retirava a certeza absoluta positivista do marxismo-leninismo (muitas contradições nesta expressão de que não posso curar agora). E o teorema de Goedel mostra que a razão se rebela quando dela queremos extrair mais do que ela algum dia nos prometeu. O problema não está nos limites da razão, mas no facto de nós lhe querermos (irracionalmente) impor que não tenha limites.
Convenhamos portanto, que é difícil estar presente no espaço público hoje em dia. Tem de se fazer uma política racional, uma economia que se anuncia como tal, aceitar reger-se por um Direito cada vez mais tentacular como espaço de crescimento teratológico da razão. Mas convenhamos igualmente que quem ocupa esse espaço público é produto adaptado a ela. Não se trata de cultores da razão sofrendo com o seu mau uso. São na sua maioria incapazes da razão, usando-a apenas no Direito, na economia, na política, ou julgando-a usar, porque vivem da ilusão de que esses são os espaços privilegiados da sua actuação.
Criaturas meramente adaptadas ao espaço público, segregadas por ele como hormonas meramente reactivas, crescidas para o viver sem crítica nem oposição verdadeira, padecem apenas. Padecem do mal do século: não cultivam a razão, porque ela lhes é fraca, porque acreditam piamente na sua imensa força para aguentar os embates dos seus dislates e trágicos erros e por em última análise serem criaturas sem paixões. Estes aqueles que incarnam o espírito da época: amorfos e amputados.
Alexandre Brandão da Veiga
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