quarta-feira, 30 de maio de 2012

Relvas, o fumo e o fogo

O objectivo era ligar Miguel Relvas a Silva Carvalho. Era importante «provar» que, entre maçons e com o apoio sujo das secretas, Nuno Vasconcellos estaria melhor defendido do que Francisco Balsemão, em pleno processo de privatização da RTP. O relacionamento social e/ou profissional entre Relvas e Silva Carvalho não foi transmissível a qualquer decisão do Governo. Não houve mudanças nas secretas, como sugeria o espião, e não foi decidido o processo da RTP.
A guerra Balsemão / Vasconcellos é violenta porque opera na mistura explosiva de rupturas filiais e interesses económicos rivais. Pior: as batalhas travam-se entre o domínio da mensagem dos media ao qual se contrapõe o domínio de informações secretas, colhidas indevidamente.A história tem todos os ingredientes da conjura e, sendo falsa, constitui a armadilha política perfeita. A guerra Balsemão/Vasconcellos, as informações secretas e as pressões do espião sobre o poder não têm origem em Miguel Relvas. Mas têm nele o seu destino. Saberemos distinguir?

(Conheço Miguel Relvas mas não tenho uma relação pessoal com ele. Digo o que penso, antes sequer de o ouvir na Comissão Parlamentar de hoje).

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terça-feira, 22 de maio de 2012

Quem gosta da inovação?

Mais um dos lugares comuns da nossa época. Quem gosta da inovação? Toda a gente. E como de costume, quando todos aplaudem, é muito possível que estejam a dizer coisas diversas e com diversas intenções.




Há uns anos havia uma série de televisão britânica em que todos os ministros concordavam com a igualdade entre homens e mulheres, salvo no respectivo ministério, que tinha sempre boas razões para não a aplicar. A relação que muita gente tem com a inovação é da mesma natureza.



Vejamos em primeiro lugar o que não é inovação.



Muitas vezes vejo criaturas apresentar um “paper vindo dos Estados Unidos” que mostra a últimas inovações seja em que matéria for, e estão muito entusiasmados com ele. Seja para mera contemplação, seja para o aplicar, quem segue esta via não faz inovação. Apenas segue a inovação dos outros. Se para seguir as melhores práticas, outras práticas, piores ou não, não interessa. Pode ter sentido de melhoria, de aprendizagem, admite-se. Mas o que interessa é que não é um inovador. Apenas segue a inovação dos outros. Inovadores são os outros. Aqueles são apenas seguidores.



Também não é cultivar a inovação fruir das inovações alheias. Usar telemóveis, computadores, o que seja, não é inovar. É apenas fruir da inovação alheia. E quanto mais se integram essas inovações na vida das pessoas menos se caracterizam pela inovação. Apenas se incrustam na trivialidade quotidiana das pessoas. Estes são apenas fruidores.



Fica então por saber o que é gostar da inovação, estar pronto para ela. Significa basicamente três coisas.



Em primeiro lugar aceitar o processo de inovação dentro a sua organização. E esse processo tem um nome simples: estranheza. A inovação dirige-se para o futuro, ou seja, para o vazio, ou para o infinito de possibilidades, o que no caso vem a dar ao mesmo. Querer inovação é aceitar estranheza por uma razão básica. Se os conceitos de base, se o percurso nos forem familiares, não se está a inovar. Nem tudo o que é estranho é inovador, mas tudo o que é inovador começa por ser estranho.



É a velha expressão de Hadamard “pensar ao lado”. Hadamard dizia que as grandes revoluções na ciência eram feitas por pessoas que pensavam ao lado. Se uma organização não está aberta para quem pensa ao lado, não inova. Apenas segue a sua rotina, as práticas mais conhecidas. Vive a sua vidinha.



Em segundo lugar, significa querer transdisciplinaridade. Transdisciplinaridade não é multidisciplinaridade. Esta é a apenas uma conjunção. Transdisciplinaridade significa estar aberto a outras disciplinas, ser capaz de comunicar com elas. As inovações em todas as áreas foram sempre feitas por pessoas que ligaram duas ou mais matérias muito afastadas entre si. Heisenberg verificou-o e os exemplos são múltiplos. Quem dedicou uma vida inteira apenas a estudar direito, ou economia ou gestão não é um inovador.



Nas nanotecnologias inova-se porque se ligam física, matemática, química, engenharias, biologias, virologia. Euler inova porque relaciona na sua célebre equação a trigonometria, a álgebra e os números complexos. Os computadores resultam da confluência da lógica matemática com a física quântica. Toda a inovação é relacionação do distante.



Em terceiro lugar, inovação implica indiferença perante os títulos. Quem distingue administrador de administrativo não inova. Uma boa ideia é boa independentemente de quem a emite. Um país, uma organização, que dêem muita importância aos títulos, nunca serão inovadores. Os títulos são sempre o congelamento de um passado. Mostra o nome do que uma pessoa fez. Nada nos diz sobre o seu futuro.



O maior professor catedrático de física do mundo, Planck, chama um simples funcionário de um escritório de patentes da Suíça. Dá-se o caso de este se chamar Einstein. Os países nórdicos inovam mais que a Europa do sul. Porquê? Precisamente porque são mais indiferentes aos títulos sejam académicos, sejam empresariais, sejam organizacionais. Uma ideia é boa ou má, não é dourada ou o seu contrário.



Por isso, quem diz que gosta de inovação ou que acha muito importante a inovação está a desejar que os outros façam coisas novas, eventualmente estará a fazer mero discurso de rotina, mas não é alguém que esteja disposto a introduzir inovação nas suas esferas de actuação. Já se alguém disser outra coisa, talvez seja realmente alguém aberto à inovação. Essa outra coisa é simples: aceito a estranheza, quero a transdisciplinaridade, sou indiferente aos títulos.









Alexandre Brandão da Veiga



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segunda-feira, 7 de maio de 2012

Os tecnoideólogos


Na França de meados do século XIX nasce uma figura de homem nova na História, pelo menos com essa consciência. Cansados de lutas ideológicas extremistas, compreendendo a necessidade de utilizar os instrumentos da ciência, da técnica e da economia capitalista, mas compreendendo igualmente que todas elas se têm de compreender de acordo com uma função social, nasce o tecnocrata. O tecnocrata nasce no II Império por influência do Saint-simonismo, segundo se afirma. Mas em boa verdade tanto o saint-simonismo como o movimento tecnocrático têm a mesma base: o cansaço de lutas ideológicas.




O tecnocrata é o homem que suspende a realidade, ou uma boa parte dela. Concentra-se numa especialidade e a ela se dedica em exclusivo. Não elabora teorias sobre Deus, o amor, a vida em geral, porque entende que nada pode dizer sobre elas. Não discute sequer a utilidade das questões. Suspende-as pura e simplesmente. Tem muito que fazer.



A Grã-Bretanha do século XIX criou outro tipo de homem, o utilitário. Comerciante, engenheiro ou mesmo sacerdote vê apenas a realidade na perspectiva do que é útil. Mesmo quando frequenta regularmente a igreja fá-lo porque a considera uma instituição socialmente útil. A marca deste tipo de homem atravessa toda a sociedade. Somerset Maugham, ao falar dos ingleses dos anos 1920 e 1930 dizia que mais facilmente acabavam por falar de sexo que de alma, palavrão supremo, que cobriria de ridículo e vergonha quem usasse tal palavra. O utilitário não suspende, suprime.



A Alemanha cria ainda outra figura, o tecnólogo. Este surge do cruzamento de três movimentos. A forte ligação à ciência, uma concepção de cultura como apolítica, e simultaneamente, paradoxo meramente aparente, uma fidelidade ao projecto de poder do Reich. Não faz política porque para ele fazer política é entrar em discussão. É participante activo da política do II Reich, mas não se considera ele fautor dessa política, mas apenas seu executante. Mais apto a falar de cultura que os anteriores, menos pudico quanto aos grandes temas filosóficos, cala-se no entanto mais na sociedade.



Um suspende, um suprime, outro ainda cala-se. Cada um deles tem os seus momentos de glória e não se pode estar demasiado grato ao que de extraordinário fizeram para o nosso conforto e para a nossa civilização material. Se saliento este tributo que temos de fazer a estes tipos humanos, faço-o com plena consciência. É que é demasiado comum serem degradados, desrespeitados, quando em boa verdade a eles muito devemos. Mas todos eles são executantes de ideias, e não seus criadores, mais uma vez meros usufrutuários de uma cultura e não homens que a renovem.



O problema é que hoje em dia assistimos ao império de um novo tipo de homem, resultado da mestiçagem entre os três: o tecnoideólogo. O tecnoideólogo suspende todos os temas que sejam do âmbito da vida pessoal, da vida em geral. Suprime toda a noção de transcendente e cala tudo o que possa pôr em causa a sua visão do mundo.



Este espécime humano, encontramo-lo hoje em dia entre os chefes das empresas, mas igualmente entre a administração pública. A figura híbrida, teratológica, surgiu, não por culpa sua, mas para preencher um vazio. A natureza tem horror ao vazio. E perante políticos, jornalistas, e um público em geral que se mostra incapaz de enunciar e executar novas ideias políticas, este espaço foi tomado por ele. É ele que sofre a pressão para resolver problemas. Já não tem Napoleão II nem Thiers, nem Bismarck nem Disraeli que lhe dêem o enquadramento político geral.



O tecnoideólogo faz o papel dos bispos durante as invasões bárbaras. A maioria das pessoas esquece que grande parte do poder temporal dos bispos lhes veio das populações. Foram as populações que lhes entregaram o poder temporal porque os principados estavam impotentes. Da mesma forma, os políticos, e em geral os homens públicos, desistiram nos últimos anos de fazer política. O principal problema político da Europa, e em parte do mundo, é a unificação europeia. Da solução que se der a este problema dependem todos os equilíbrios mundiais.



Mas as populações escolheram políticos que suspendem a questão da unificação, suprimem a discussão sobre a entrada da Turquia, e calam sobre as imposições americanas à Europa. Apagada a discussão, convenhamos que já postiça e rotineira entre os blocos ocidental e de Leste, ficaram, em grande parte dos casos, perdidos de referência. A questão europeia é tratada como anedótica, meramente lateral. Porque o tecnoideólogo é incapaz de lidar com grandes realidades.



O tecnoideólogo herdou dos seus antepassados o horror à política como consagração de ideias e valores. O seu pensamento assenta em manuais. Os seus livros de orações são documentos internacionais, hoje em dia de preferência em inglês. Está permanentemente ocupado, ou gosta de se ver assim pelo menos.



Se os bispos tiveram antes de ocupar o poder temporal, tendo sido a religião expulsa do espaço público, e a ideologia varrida da exposição geral, cabe-lhe a ele substituir esse espaço. A culpa não é dele, saliento mais uma vez, mas do vazio deixado pelas populações, políticos e jornalistas. Sem ninguém que o oriente, actua por inércia de movimento. Consulta os textos e age em função deles.



Tem fé no Direito. Acha por isso que a Europa é a democracia, os direitos do homem, a economia de mercado. Com uma total incultura simbólica, acha que o mundo assenta em andares superiores, sem procurar saber de que são feitos os solos em que realmente assenta o edifício. As soluções para a sua vida, encontra-as nos tratados europeus, os nas constituições ou nas declarações universais dos direitos do homem.



Tem fé, não na ciência, que desconhece, não na técnica, de que foi ensinado a desconfiar, não no ambiente, que foi apenas obrigado a valorizar, mas no mecanismo. Desde que encontre um mecanismo sente-se em casa. O mercado, a comunicação social, o sistema burocrático. O “paper”, o documento internacional é a sua máxima expansão.



O problema dos híbridos, no entanto, é que se definem por oposição aos seus antepassados. Nascido de um vazio de poder, apresenta uma face de negação. Já não suspende o juízo porque julga que fala de toda a realidade. Não suprime, mas acrescenta à realidade. Impõe o que a realidade deve ser na sua visão. A Europa é a democracia e a economia de mercado, um “espaço de comunicação de culturas” (seja lá o que for que isso queira dizer). E não se cala, cala os outros. Porque se considera, não neutro em relação aos valores, mas o detentor dos valores essenciais.



Quando está na administração pública tem vergonha de ter poder, exerce-o não com parcimónia, mas com um eterno pedido de desculpas. E tem razão. Tem de pedir desculpa de alguma, de muita coisa. Quando está nas empresas é obcecado com o Estado. Exige o seu apagamento, oficialmente, mas a sua colaboração, nos corredores. Diz que o Estado o atrapalha, nos jornais, mas não vive sem o seu empurrão, nos gabinetes.



Vazia a política, vazia a religião no espaço público, fenecidas as ideologias sistemáticas, o tecnoideólogo pode passar a ser novo sacerdote de uma religião que o instituiu, a do vazio. Odeia a soberania popular, a democracia, e quer passá-la pelo seu crivo. Quando por exemplo Chipre recusou a parte turca por decisão soberana popular, tanto a comissão europeia como o governo britânico (tão próximos que andam nos últimos anos na sua ideologia) afirmaram que a parte grega da ilha ensombrou a sua adesão. Nem admitem que haja referendo, decisão popular sobre a adesão da Turquia, porque são detentores da verdade.



O tecnoideólogo é assim o sucessor do inquisidor. Não foi escolhido pela vontade popular, sente-se imune a ela e mais iluminado que a soberania. Considera que a vida é mera execução e não novação, porque esse é o seu modo de viver. Determina o bem e o mal nominando-os com terminologias pseudo-técnicas. Tendo nascido de um vazio, não pode admitir que existe esse vazio que o legitima. Inculto de simbólica, nega o valor dos símbolos. De recente extracção, é mais um inimigo da História. Sorri perante o futuro e perante as hipóteses tontas, como a adesão da Turquia ou uma Europa como mera zona de encontro de culturas. Porque não sabe destrinçar um aeroporto de um centro cultural, um lupanar da sua casa. Mas tem realmente razões para sorrir? Fora mero tecnocrata, utilitarista ou tecnólogo, estaria servindo o soberano, faria bem o seu papel. Não o sendo, fazendo da vida mera execução, sem soberania, apenas resvala para o futuro, sorrindo, é certo, lançando olhares de censura, também, até se estatelar contra o que o futuro lhe trouxer. Só não é profeta da desgraça porque não é profeta. E nele a desgraça é sempre presente.



Alexandre Brandão da Veiga































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