terça-feira, 10 de abril de 2012

O melhor e o pior

Ser como se é pode ser quando muito uma fatalidade mas não um destino. E é melhor ser melhor que pior. Duas verdades que deveriam ser evidentes, sem as quais nenhum juízo é possível, em suma, nenhuma consciência.


E no entanto, vivemos numa época em que são contestados como poucas vezes foram.


Poucas vezes digo eu, porque nada pior que dar precedências ou exclusividades aristocráticas a épocas sobretudo se apenas primam pela mediocridade. No Baixo Império romano a deusa Fortuna, ou, no lado oriental do império, a deusa Tychè (mudem-lhe o nome, mas é sempre a mesma), imperava. Não que o homem tenha deixado de acreditar nos deuses, bem pelo contrário, nunca tantos deuses floresceram, mas feitos à medida. Não que o sentido da transcendência se tivesse perdido, bem pelo contrário, a tendência monopolista dos deuses únicos começava a surgir (Ísis, Mitra, Serápis). Mas a própria multiplicidade de soluções tinha levado os homens a desacreditar na capacidade divina para regular o mundo.


Daí que a deusa Fortuna, ou seja, uma deusa demissionária, arbitrária, caprichosa tivesse de ser incensada como a grande regedora e provedora do mundo.


Na nossa época, afirmar que alguém tem de ser diferente do que é pode ser legítimo, mas apenas nos casos em que se destaca pela excelência, pela acutilância ou pela intervenção. O colectivo é sempre irrepreensível. Todos os defeitos que são inadmissíveis no ser individual passam a ser mais que permitidos, nobres, no colectivo. Degolar animais é acto de crueldade, mas se decorre de tradição étnica é maravilhosa forma de integração no mundo, acto religioso, e portanto, a respeitar. O colectivo é o que é e isso justifica-o.


Mas o individual, se lhe falta individualidade, e precisamente por lhe faltar, por apenas reproduzir o que o colectivo lhe impõe, ou mesmo que use o colectivo como mero pretexto, passa a ser incensado. Matar uma mulher depois de a violar é abominável mas se for um turco a fazê-lo em crime de honra já temos de ter em conta a situação complexiva, palavra que mais não significa que não nos comprometemos com a sua condenação.


O uso de particípios passivos é aliás significativo na nossa época. As classes são desfavorecidas. As sociedades não menos desenvolvidas. As pessoas foram oprimidas. O agente da passiva pode ficar anónimo, mas a construção gramatical é suficientemente explicativa. Ninguém faz nada. Poucos são responsáveis. Preguiçosos inexistem, criminosos quase desapareceram.


A outra desculpa usada é a da evolução. Os medíocres não são avaliados pelos seus resultados finais, mas o simples processo já se torna justificante. Se um país viola os direitos humanos, temos sempre de ter em conta os esforços que fazem para melhorar a sua situação.


Finalmente, o contexto, a perspectiva “holística”, boa desculpa para não se cuidar do pormenor, sem o que a integração do todo é apenas turística. Se o médico erra grosseiramente temos de ter em conta o contexto, a pressão a que está sujeito, e poucos se perguntam sobre se é ele totalmente desadequado para as suas funções. Se a criança é mesmo burrinha (existem, não é um mito), todo o contexto é fraca desculpa para o seu insucesso escolar.


O colectivo, o passivo, a evolução e o todo. Palavras com nobre ascendência, mas de prostituída utilização. Lugares comuns de uma época sem indivíduos, de uma paisagem deserta de agentes, sem estado definido e sem cuidado com o pormenor.


Usa-se hoje nos meios económicos a expressão benchmark, que em bom português se poderia traduzir por bitola, estalão, paradigma. Tudo depende do que escolhemos para paradigma. Se escolhemos o colectivo, o passivo, a evolução e o todo, florescem as desculpas, as justificações, os méritos relativos. E fenece a grandeza. Se curamos da transcendência, ou seja, se usamos como ponto de comparação a dita transcendência, destacamos melhor os defeitos, as insuficiências, as mediocridades.


Mas a nossa época nada quer saber da transcendência. Julgando-se inteligente, obsessão típica de que não o é, ri-se das anteriores que usavam o maior dos estalões, aquele que não admite maior, e congratula-se de tão escassos objectivos, e consequentemente de tão bons resultados em relação a eles. É evidente que se as minhas ambições são curtas as realizações são relativamente exuberantes.


Relembremos o nosso ponto de partida. Ser como se é... Não nos espantemos que vivamos a mais fatalista das épocas, que sob o nome de caos e de complexidade alberga a sua demissão de ser agente de um destino. Os nossos antepassados, para distinguirem a Europa da Turquia, falavam do fatum mahometanum, do fatalismo islâmico. Mesmo que a análise fosse simplista, sabiam distinguir na Europa como elemento distintivo um elemento agente. De Prometeu que rouba os deuses, de Ulisses que volta a casa (agir é sempre voltar a casa e não ficar parado no caminho), do Cristo que actua na História.


Age quem sabe que não está bem, ou, melhor ainda, que poderia estar melhor. Que não lhe basta. A rainha Cristina da Suécia, quando abandonou a sua coroa disse: “Non mi bisogna e non mi basta”. Não me é preciso e não me basta. Agir profundamente, segundo os paradigmas do absoluto, implica abdicar de algo importante. De uma ilha perfeita, de uma calma reencontrada, mesmo de uma coroa. Quem está satisfeito consigo mesmo, em boa verdade por medo da instabilidade das coisas, não age, é mero passivo, fala do todo, mas incensa à deusa Fortuna. Em vez de encontrar na imprevisibilidade uma oferenda (os gregos sabiam que a maldição de Cassandra era ter sido destituída da imprevisibilidade) nela vêem só um ataque às suas posses.

Voltemos ao ponto de partida. É melhor ser melhor... é quase ridículo lembrá-lo. Mas quando se diz que os critérios da Antónia ou da tia Micas têm exactamente o mesmo valor que os de Goethe, ou de Beethoven, e que não há diferença nenhuma entre o tam-tam, o corridinho, ou Bach, tudo é legítimo, como se mesmo que o fosse, a legitimidade fosse critério de excelência, algo vai profundamente mal na consciência europeia.


Porque entramos finalmente no âmago da questão. A consciência começa por ser a consciência do bem e do mal. A árvore do conhecimento é a árvore do bem e do mal. Este arquétipo é tão arreigado, tão arcaico, e tão presente em nós, que ainda hoje em dia dizemos que uma coisa é boa, uma tese o é, tanto quanto poderíamos dizer que uma pessoa é boa. Não há consciência sem noção de bem ou de mal. Como estas se preenchem, é questão que deixo para outras aventuras. O essencial é reter o que seja a raiz da consciência.


Mas não há só dicotomia na consciência. Há hierarquia, por isso se criou o conceito de melhor e o de pior em consequência. A capacidade de reversão é o primeiro sinal de racionalidade. Se pode subir, posso descer. Se posso ver o melhor, posso ver o pior.


Que campanha é esta que diz que não há o melhor e o pior, que diz que não há bem nem mal? Que em suma diz que ser como se é constitui por si mesmo um destino? É uma campanha que visa destruir a consciência, portanto, visa adormecer, entorpecer, parasitar a consciência europeia. É mais fácil dominar pessoas inconscientes que conscientes. E sob a bandeira das liberdades, da abertura, do relativismo, do multiculturalismo, vai obrigando a consciência a aceitar como seu espaço natural tudo o que a invada, que a domine, que a parasite. A deusa Fortuna impera, tudo é válido portanto. Nada há que seja melhor, salvo... salvo a invasão, o parasita e talvez um dia, o torpor absoluto dessa consciência. E eis que a civilização que construiu a consciência e que nela assentou fica entregue às mãos dos selvagens. Uns são primeiros-ministros, outros apenas turcos.


Alexandre Brandão da Veiga

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