sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Indeterminações na ciência

Os Antigos discutiam da necessidade, com Descartes começamos a discutir da certeza. Estamos a falar de planos bem diversos. A necessidade é objectiva, está no mundo. A certeza estará no sujeito se tiver de estar algures.


Mesmo com a célebre afirmação de Laplace, de que se soubesse das condições iniciais de um sistema saber-se-ia todo o destino futuro do mesmo, o mesmo Laplace reconhecia que não podemos ter a certeza absoluta por razões cognitivas. Nunca saberíamos até ao infinito todas as condições iniciais desse sistema. E muito antes dele, Leibniz dizia que a certeza dada pela ciência era bem diferente da certeza lógica, era uma certeza moral. Não se trata de uma afirmação passageira, mas de uma insistência, de uma posição bem consciente em Leibniz.

Estes elementos mostram-nos que não é preciso ir aos cépticos da Antiguidade para descobrimos indeterminações na ciência. Mesmo nos grandes cultores do, chamemos-lhe assim à falta de melhor, dogmatismo científico, os limites deste dogmatismo eram bem conhecidos.


Se bem virmos na base de todas estas considerações está a consciência de um facto muito simples: o homem não é divino (pelo menos exclusivamente divino), é por isso destituído de uma ciência perfeita ou sequer infusa.


Curioso o facto de os maiores triunfalistas da ciência, certos positivistas, serem hoje todos vistos como modernos politicamente. Destronaram a religião, desprezaram os antigos, aspiraram ao laicismo, deram um pontapé na metafísica. Politicamente estão mais próximos dos que hoje em dia atacam a certeza na ciência. O que só mostra que é de uma revolta edipiana que se trata. Quando os relativistas da ciência (com nomes para todos os gostos) atacam o dogmatismo, é do dogmatismo dos seus pais espirituais e políticos e não dos cientistas cristãos (ou religiosos em geral) que tratam. O seu alvo é Berthelot e não Planck, Comte e não Heisenberg. É de uma luta de família que se trata, de uma despudorada luta contra os próprios pais. Nunca um cientista cristão diria que o homem poderia ter certezas de tudo e, por maioria de razão, nunca disse que a ciência tudo resolveria de forma certa.


Os triunfalistas da ciência em bom rigor nunca foram cientistas, nem em geral bons filósofos. Foram bons sociólogos (Comte) ou geniais lógicos (o neopositivismo lógico vienense). Mas de entre eles não se encontra um grande físico, poucos matemáticos, apenas muitos químicos e biólogos. Uma doença de ciências em nascimento e com vontade de autonomia, uma crise de crescimento em suma.


A questão coloca-se hoje em dia porque surgem como grande novidade movimentos que salientam que tudo pode ser ciência, que os rituais da ciência são arbitrários, nada mais válidos que os de quaisquer tribos.


Vejamos. Que a ciência é feita por homens ninguém nega. Daí que tenha as falhas dos homens e das obras humanas. Daí que obedeça a uma História, e seja historicamente compreensível. Daí que igualmente, e na medida em que foi sobretudo criação individual, muito da sua produção não se possa explicar historicamente em exclusivo. Sem a riqueza e a prosperidade da Europa do século XVII, sem os seus meios de comunicação e correspondência, não se pode compreender a criação do cálculo infinitesimal. Mas não há teoria histórica que explique como é um jurista como Leibniz a criá-la. Nem pode estabelecer determinações entre os seus teoremas fundamentais e os seus algoritmos e a sociedade da época. Há sempre relações, mas nunca vínculos absolutos.


Que uma ciência esteja culturalmente determinada é evidente. Não se compreende a matemática europeia sem o cristianismo, o seu pensamento do infinito por exemplo. Nem a física sem se compreender a polémica das forças vivas. Leibniz chega à equação da força com argumentos teológicos, e de teodiceia, os mesmos que Voltaire, que nunca deu um só contributo para a física, tanto ridicularizou. Ainda hoje em dia na física as teológicas metodologias de Mauperthuis (óptimo, menor esforço, etc.) são usadas na física. O conceito de prova está marcado pela ideia de experimento crucial ou seja, o experimentum crucis, a prova por excelência, a prova da cruz. Não fazemos ciência como os indianos ou os chineses.


Curioso é que os mesmos que insistem na determinação cultural da ciência são precisamente os mesmos que contestam o papel do cristianismo na definição da Europa. O alimento da ciência é sempre em última análise espiritual e é reconhecido pelos maiores cientistas que existe uma ética científica, independentemente de se aceitar ou não uma ética social do cientista.


Mas uma coisa são as fontes, outra os resultados. Nos seus resultados, a ciência chega a resultados que são válidos independentemente da cultura em que se está. Quem quiser construir um avião na China tem de usar a mesma física que se usa na Europa e que esta criou. A demonstração de um teorema na Turquia tem de ser feita da mesma maneira que se faz na Europa. Isto não é tão evidente quanto possa parecer. É que em todo o mundo se reconhece que essa ciência é melhor. Não que as outras sejam todas lixo, ou mesmo que não tenham alguns aspectos que possam ser aproveitados. A medicina tradicional chinesa e indiana traz aspectos importantes para a medicina ocidental. Mas a avaliar pelos resultados, também os chineses e indianos melhoraram a sua longevidade, não com as suas medicinas tradicionais, mas com a europeia.


Uma árvore conhece-se pelos seus frutos, diz a Bíblia. E parece que o mundo inteiro aceita este refrão. Porque quando os persas ou turcos dizem que precisam de medicamentos não se estão a referir a medicamentos da sua medicina tradicional. Nem voam em aviões baseados nas suas ciências.


Por isso, a quem insiste na total indeterminação da ciência, na sua relatividade cultural, e que afirma que o método científico é apenas um rito como qualquer outro aconselho-o a andar num avião baseado em ciência turca, a tomar medicamentos contra o cancro da medicina chinesa e a, caso lhe rebente em casa um esquentador, receber uma resposta da companhia de gás no sentido em que a ciência é arbitrária e por isso não lhe é devida nenhuma indemnização.

Curioso igualmente que quem opine neste sentido em geral seja totalmente destituído de conhecimentos matemáticos ou físicos. Porque se alguma coisa soubesse destas ciências (porque também o são, e não apenas as antropologias e as teorias da literatura, por mais lhes espante esse facto - que não são paradigmas para a restante ciência aliás), saberia que há formulações, resoluções e colocações de problemas que estão... erradas. Erradas mesmo, sem apelo nem agravo.


Em última análise temo bem que habituados ao erro, comprazendo-se nele, apenas o queiram legitimar sobre a capa da indeterminação. Acusadores e julgadores ao mesmo tempo, impositores de regras processuais que eles mesmo criaram, pretendem-se os únicos sacerdotes da grande deusa da Indeterminação, perante a qual todos os outros deuses seriam falsos. Legitimando o erro legitimam-se em suma. O trabalho medíocre confina sempre na autobiografia.


Alexandre Brandão da Veiga




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