O desprezo na cultura europeia
Todas as grandes civilizações desprezam. Este facto é esquecido. Mas o que tem de específico a cultura europeia é isso contradizer a divindade de amor do cristianismo. O turco e o árabe desprezavam o europeu, mesmo muito depois de este ser mais civilizado que ele. Os gregos e romanos desprezavam o bárbaro, tanto quanto eram capazes de o admirar (Heródoto e os egípcios, César e os gauleses, Tácito e os germanos).
O que torna específica uma cultura é saber quem ela despreza e o quê.
Não é hoje muito bem pensante falar no desprezo como constitutivo de uma civilização, mas isso diz mais sobre a nossa época e a sua falta de lucidez que sobre a civilização enquanto tal.
Na Europa despreza-se o grão-vizir turco porque, por mais rico e poderoso que seja, é um escravo. A hereditariedade é um valor tradicional europeu e ainda hoje em dia não vi ninguém chorar de desgosto por ter grandes antepassados, mesmo que nem sempre isso lhe encha a vida. Pelo contrário vejo pessoas que douram o passado familiar.
O grande despreza em geral o pequeno: “Odeio a multidão profana e mantenho-a longe de mim “, diz Petrónio no Satiricon. Chateaubriand dizia que deveríamos ser parcos no desprezo tendo em conta a grande quantidade de pessoas que o merecem. “O ladrar dos cães que se ouve debaixo de nós apenas significa que estamos a cavalo”, dizia Goethe. “O governo da maioria é a ditadura da canalha”, dizia Voltaire. “Tudo o que brote da mera indigência é desprezível”, afirmava Schiller. As citações poder-se-iam multiplicar até ao infinito.
O nobre despreza o plebeu, o burguês o proletário, o rico o pobre, o liberal o revolucionário (e vice-versa), o democrata o monárquico, os países desenvolvidos os menos desenvolvidos, os organizados os ineficientes.
O desprezo é inevitável em qualquer civilização. Toda a cultura tem algum grau de autoconsciência. Mas se é uma civilização esta autoconsciência é sempre composta em maior ou menor grau de desprezo.
O que tem de específico o europeu? Despreza o ignóbil, ou seja o não nobre. Ou seja, o homem sem passado.
Despreza o não livre, ou seja o turco, o oriental em geral. O grego não se prosterna perante o rei (um sobrinho de Aristóteles pagou com a vida por não o ter feito perante Alexandre Magno). O romano não quer um rei (o nome de imperator, de princeps surge como sucedâneo da realeza). O cristão vive uma religião de libertação e não de submissão.
Despreza o uniforme, a platitude do Oriente. Mesmo que tenha sido por vezes injusto, encontra nas outras culturas a prevalência incontestada de um princípio. Guizot bem descreveu a Europa ao afirmar que nela nenhum princípio imperou inequivocamente sobre o outro, papado sobre império, nação sobre Europa ou feudo, linhagem sobre riqueza, monarquia sobre nobreza. Mesmo que a paisagem seja variada, os costumes diversos, as cores folclóricas e diversificadas, o europeu encontra no turco, no árabe, no chinês, o uniforme. Aquele em que um princípio venceu sobre o outro, em que a religião, a sociedade, as classes dominantes são dominadas pelo poder político.
Escusado será dizer que muitos destes princípios podem sofrer uma crítica cerrada, mais ou menos precisamente científica. A questão não é tanto de se ver a justiça da visão de uns ou de outros, mas verificar que existiu e os seus efeitos. Se os seus efeitos são Dante e Camões (“terras viciosas de África e Ásia” ou o “o Turco oriental”), Bach e Racine, Fourier e Gauss não estamos tão mal quanto isso.
O desprezo não afasta a sede de conhecimento. Poucos povos desprezaram mais os outros que os gregos e inventaram a geografia humana com Heródoto. Não afasta a reflexão sobre a diferença. O chinês e o japonês ignoram o mundo exterior, mas o grego descobre-o e o romano gere-o, e o europeu faz uma e outra coisa. Não afasta sequer a admiração. O grego despreza o bárbaro e admira o egípcio, o romano despreza o grego politicamente e idolatra-o culturalmente, o europeu despreza o turco, mas fica fascinado com o indiano ou o chinês. O europeu sabe ser superior a sua cultura e por isso inventa a antropologia cultural. Muitos povos ainda hoje em dia têm de vir à Europa para conhecerem a sua História. E um egípcio nada pode estudar do seu passado sem Champollion ou Maspero.
O europeu tem no entanto, uma especificidade. A sua religião não é apenas de irmandade, em que todos são filhos de Deus. Porque pode haver filhos preferidos, por serem detentores da primeira mensagem (judeus) ou da última (muçulmanos). É uma religião de amor. O que tem de específico a cultura europeia não é ter desprezo (todas têm), mas a contradição entre o seu princípio (cristianismo) e o seu funcionamento (desprezo). Ironia da História é precisamente esta contradição que vem ao de cima quando a Europa está no auge do seu poder.
A decadência da Europa é um duplo suicídio: guerras fratricidas (as guerras mundiais) e auto-culpabilização. As teorias contra a Europa são forjadas na própria Europa. No império turco nada vemos disto. No fim dos impérios árabes nada vemos disto igualmente. É o princípio cristão, degenerado, mal interpretado, a gerar o auto-martírio da Europa.
O desprezo está lá, mas vira-se contra a própria civilização. A Europa é colonialista, imperialista, tem “responsabilidades históricas”. Nenhum império em encerramento fez tal passo. Os turcos sentem-se vítimas do sultanato e têm orgulho do seu passado. Os europeus sentem-se culpados das suas glórias.
Que se retira de relevante para a política actual? É que mais uma vez, cristianismo e paganismo indo-europeu moldam a Europa, de uma forma de ou de outra, ainda hoje em dia, como desde há dois mil anos. O princípio cristão vence parcialmente, na forma da culpa em relação aos outros e na sua perpétua justificação (“não julgues (os outros) para não seres julgado”). O princípio pagão vence pela admiração da grandeza (alheia, mesmo que ficcionada) e pelo desprezo (próprio).
Jogando sempre com as mesmas peças a Europa reproduz-se a si mesma, manipula sempre os mesmos símbolos. A questão é que o faz hoje em dia de forma perigosa. Nunca se mete a faca à boca, nem se vira o garfo contra si mesmo. Porque a sanidade mental exige o “como te amas a ti mesmo”... E um salutar desprezo, sobretudo pelo que é desprezável em nós e nos outros. Se se amam os outros apenas porque nos desprezamos nós mesmos o amor pelos outros está inquinado deste desprezo, é o desprezo e não o amor a sua causa. Justiça, em suma.
Alexandre Brandão da Veiga
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