sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

O desprezo na cultura europeia

Todas as grandes civilizações desprezam. Este facto é esquecido. Mas o que tem de específico a cultura europeia é isso contradizer a divindade de amor do cristianismo. O turco e o árabe desprezavam o europeu, mesmo muito depois de este ser mais civilizado que ele. Os gregos e romanos desprezavam o bárbaro, tanto quanto eram capazes de o admirar (Heródoto e os egípcios, César e os gauleses, Tácito e os germanos).


O que torna específica uma cultura é saber quem ela despreza e o quê.

Não é hoje muito bem pensante falar no desprezo como constitutivo de uma civilização, mas isso diz mais sobre a nossa época e a sua falta de lucidez que sobre a civilização enquanto tal.


Na Europa despreza-se o grão-vizir turco porque, por mais rico e poderoso que seja, é um escravo. A hereditariedade é um valor tradicional europeu e ainda hoje em dia não vi ninguém chorar de desgosto por ter grandes antepassados, mesmo que nem sempre isso lhe encha a vida. Pelo contrário vejo pessoas que douram o passado familiar.


O grande despreza em geral o pequeno: “Odeio a multidão profana e mantenho-a longe de mim “, diz Petrónio no Satiricon. Chateaubriand dizia que deveríamos ser parcos no desprezo tendo em conta a grande quantidade de pessoas que o merecem. “O ladrar dos cães que se ouve debaixo de nós apenas significa que estamos a cavalo”, dizia Goethe. “O governo da maioria é a ditadura da canalha”, dizia Voltaire. “Tudo o que brote da mera indigência é desprezível”, afirmava Schiller. As citações poder-se-iam multiplicar até ao infinito.

O nobre despreza o plebeu, o burguês o proletário, o rico o pobre, o liberal o revolucionário (e vice-versa), o democrata o monárquico, os países desenvolvidos os menos desenvolvidos, os organizados os ineficientes.


O desprezo é inevitável em qualquer civilização. Toda a cultura tem algum grau de autoconsciência. Mas se é uma civilização esta autoconsciência é sempre composta em maior ou menor grau de desprezo.


O que tem de específico o europeu? Despreza o ignóbil, ou seja o não nobre. Ou seja, o homem sem passado.


Despreza o não livre, ou seja o turco, o oriental em geral. O grego não se prosterna perante o rei (um sobrinho de Aristóteles pagou com a vida por não o ter feito perante Alexandre Magno). O romano não quer um rei (o nome de imperator, de princeps surge como sucedâneo da realeza). O cristão vive uma religião de libertação e não de submissão.


Despreza o uniforme, a platitude do Oriente. Mesmo que tenha sido por vezes injusto, encontra nas outras culturas a prevalência incontestada de um princípio. Guizot bem descreveu a Europa ao afirmar que nela nenhum princípio imperou inequivocamente sobre o outro, papado sobre império, nação sobre Europa ou feudo, linhagem sobre riqueza, monarquia sobre nobreza. Mesmo que a paisagem seja variada, os costumes diversos, as cores folclóricas e diversificadas, o europeu encontra no turco, no árabe, no chinês, o uniforme. Aquele em que um princípio venceu sobre o outro, em que a religião, a sociedade, as classes dominantes são dominadas pelo poder político.


Escusado será dizer que muitos destes princípios podem sofrer uma crítica cerrada, mais ou menos precisamente científica. A questão não é tanto de se ver a justiça da visão de uns ou de outros, mas verificar que existiu e os seus efeitos. Se os seus efeitos são Dante e Camões (“terras viciosas de África e Ásia” ou o “o Turco oriental”), Bach e Racine, Fourier e Gauss não estamos tão mal quanto isso.


O desprezo não afasta a sede de conhecimento. Poucos povos desprezaram mais os outros que os gregos e inventaram a geografia humana com Heródoto. Não afasta a reflexão sobre a diferença. O chinês e o japonês ignoram o mundo exterior, mas o grego descobre-o e o romano gere-o, e o europeu faz uma e outra coisa. Não afasta sequer a admiração. O grego despreza o bárbaro e admira o egípcio, o romano despreza o grego politicamente e idolatra-o culturalmente, o europeu despreza o turco, mas fica fascinado com o indiano ou o chinês. O europeu sabe ser superior a sua cultura e por isso inventa a antropologia cultural. Muitos povos ainda hoje em dia têm de vir à Europa para conhecerem a sua História. E um egípcio nada pode estudar do seu passado sem Champollion ou Maspero.


O europeu tem no entanto, uma especificidade. A sua religião não é apenas de irmandade, em que todos são filhos de Deus. Porque pode haver filhos preferidos, por serem detentores da primeira mensagem (judeus) ou da última (muçulmanos). É uma religião de amor. O que tem de específico a cultura europeia não é ter desprezo (todas têm), mas a contradição entre o seu princípio (cristianismo) e o seu funcionamento (desprezo). Ironia da História é precisamente esta contradição que vem ao de cima quando a Europa está no auge do seu poder.

A decadência da Europa é um duplo suicídio: guerras fratricidas (as guerras mundiais) e auto-culpabilização. As teorias contra a Europa são forjadas na própria Europa. No império turco nada vemos disto. No fim dos impérios árabes nada vemos disto igualmente. É o princípio cristão, degenerado, mal interpretado, a gerar o auto-martírio da Europa.


O desprezo está lá, mas vira-se contra a própria civilização. A Europa é colonialista, imperialista, tem “responsabilidades históricas”. Nenhum império em encerramento fez tal passo. Os turcos sentem-se vítimas do sultanato e têm orgulho do seu passado. Os europeus sentem-se culpados das suas glórias.


Que se retira de relevante para a política actual? É que mais uma vez, cristianismo e paganismo indo-europeu moldam a Europa, de uma forma de ou de outra, ainda hoje em dia, como desde há dois mil anos. O princípio cristão vence parcialmente, na forma da culpa em relação aos outros e na sua perpétua justificação (“não julgues (os outros) para não seres julgado”). O princípio pagão vence pela admiração da grandeza (alheia, mesmo que ficcionada) e pelo desprezo (próprio).


Jogando sempre com as mesmas peças a Europa reproduz-se a si mesma, manipula sempre os mesmos símbolos. A questão é que o faz hoje em dia de forma perigosa. Nunca se mete a faca à boca, nem se vira o garfo contra si mesmo. Porque a sanidade mental exige o “como te amas a ti mesmo”... E um salutar desprezo, sobretudo pelo que é desprezável em nós e nos outros. Se se amam os outros apenas porque nos desprezamos nós mesmos o amor pelos outros está inquinado deste desprezo, é o desprezo e não o amor a sua causa. Justiça, em suma.


Alexandre Brandão da Veiga




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sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Arrependimento e exame de consciência

“Nunca me arrependo do que faço”. Quantas vezes ouvimos esta frase. Da mesma maneira que é de bom tom dizer-se que se tem dúvidas, ao mesmo tempo é mau manifestar arrependimento pessoal. Alguns têm de pedir desculpa, mas estes são bem seleccionados. São os culpados oficiais do século. As igrejas cristãs e sobretudo os católicos, a Alemanha e em geral a Europa.

Quanto aos restantes, se disseram que se arrependem, sobretudo a título pessoal, suscitam o constrangimento, ainda mais que a condenação.


Quando saem ministros porque acusados de baixas movimentações e afirmam que têm a consciência tranquila, como se a sua consciência fosse estalão para seja quem for, quando saem governos do poder e nem um mea culpa aparece na praça pública, começamos a verificar paradigmas que mudaram de forma, mais que evidente, despudorada.

Como é possível um ser humano nunca se arrepender? E ter sempre a consciência tranquila? Só vejo uma explicação simples para isto: é que não se arrepende porque as dúvidas públicas são apenas um bom alibi para desresponsabilização. Em bom rigor não tem dúvidas, mas ignorância, nem humildade, mas sede de se escusar à responsabilidade. E uma consciência só é plenamente tranquila na perfeita santidade, o que sem medo de acusações de difamação posso afirmar ser impossível na maioria dos homens públicos. Ou caso seja absolutamente inepta.

Não se arrepende quem não assume responsabilidades, assenta na tranquilidade o de consciência inepta. O que dizem então tais pessoas? Estão a afirmar: “eu fujo às responsabilidades e a minha consciência é inepta”. Num rasgo de generosidade dou-lhes toda a razão, mas é esta razão que lhes tenho de dar que me preocupa.


Tentemos ir um pouco mais fundo. Que falta a estas pessoas? Que lacuna lhes define a vida?

Só há arrependimento havendo exame de consciência. Nós entendemos estes conceitos como fazendo parte da nossa paisagem natural, ao ponto de os querermos por vezes recusar do espaço público. A sua recusa tornou-se mesmo em doutrina oficial dos bem-pensantes. No entanto, estes conceitos levaram milénios a ser elaborados.


Ulisses não faz ainda exames de consciência autónomos. Precisa da deusa Atena para os fazer. É a primeira pessoa na História, porque percebe pela primeira vez que em certos momentos está sozinho para fazer esses exames de consciência. Ao contrário de Job, que pergunta a Deus para depois aceitar, Ulisses discute com o divino. Em ambos os casos a consciência constrói-se sempre por referência a uma entidade externa, pelo menos simbolicamente externa.


Com os estóicos este exame de consciência ganha outra acuidade e perfeição. Em Séneca já se encontra profundamente elaborado. Em certo sentido o exame da consciência é para a alma o que é a água canalizada para a saúde física. Pode-se viver sem ela, mas o preço pago em mortes prematuras é muito grande. O exame de consciência é o primo do aqueduto romano.

Com o cristianismo o exame de consciência assume a sua máxima dimensão. As exigências morais do cristianismo são as maiores que jamais se viram na História. “Amar o inimigo” como prova da moral estabelece uma bitola de moral acima das possibilidades humanas comuns. “Vós sois como deuses”, lembra o Apocalipse. E eis que por via do exame de consciência, também dele, se exige que o homem se divinize (os ortodoxos orientais têm estes conceitos mais vívidos que nós).


O exame de consciência não implica apenas uma especial relação com Deus. Muitos agnósticos e ateus receberam esta herança antiga e cristã. Carreia antes do mais uma determinada visão do homem. Uma visão em que a sua alma, a sua atitude, os seus sentimentos, os seus actos, são maleáveis, dependem em parte pelo menos do seu poder. Em que o ser humano é agente. O homem que faz exame de consciência não é apenas um homem com capacidades de conhecimento que se desenvolvem. É um homem que sabe poder agir sobre si mesmo, que tem poder de se modificar, que não é um mero balão ao vento.


Daí que se arrependa. Arrepender-se é travar caminho, mudar de direcção. Diz o clássico princípio da inércia que um corpo se mantém na sua situação de repouso ou movimento se não for perturbado por nenhum força externa. O arrependimento é o que em física se chama impulso. Não se vê aí logo a mudança de direcção, mas é o primeiro requisito para que ela exista. Quem é incapaz de arrependimento vive uma antropologia rígida, pouco livre, em que nada do que é é passível de ser moldado. É um hirto, nada mais.


Que conclusões retiramos? Que os homens públicos apenas querem fugir às responsabilidades, têm consciências ineptas, são passivos e inertes, incapazes de mudança de direcção e consequentemente de melhoria. É o que nos dizem, pelo menos.


Ao contrário do que se pensa nunca há em absoluto excesso de exame de consciência nem excesso de arrependimento. Tudo depende das forças de cada qual. Em muitos casos há excesso de leitura, porque a leitura em vez de enriquecer apenas confunde. Noutros há excesso de reflexão que apenas esgota sem permitir conclusões. Mas se de excesso se trata apenas se refere às capacidades de quem exerce a actividade. Uns lêem gozosamente tratados sobre cálculo tensorial, outros embatem contra uma simples conta de somar. Uns fascinam-se com a beleza da Odisseia lida no original, outros têm dificuldade em perceber de quem é prima certa personagem da vida social.


Mas se o excesso não se mede em absoluto, mas apenas relativamente às capacidades de cada qual, se afirmarmos e insistirmos nessa afirmação que há excesso de arrependimento e de exame de consciência, que este excesso rapidamente se atinge, apenas estamos a dizer que quem exerce é destituído, nada mais.


É evidente que quem pronuncia tal tipo de afirmações não o faz inocentemente. Pretende afirmar que é moderno, descontraído e, usando linguagem pouco em moda, puro como um cordeiro. Ser moderno ou descontraído nunca foi para mim qualidade ou defeito. É um estado que em nada é meritório se apenas resulta de falta de alternativa e mesmo condenável se apenas é fruto de preguiça ou má fé. É mais fácil ser como a maioria quer que sejamos que de outra forma. E quanto a ser puro como um cordeiro não deixa de ser curioso como quer os resultados mais arcaicos quem recusa os meios mais antigos.


É que em verdade do que tratamos é de gente sem sofisticação. Perdeu uma técnica porque já não se lembra onde pôs a alma. Habituados a falar para a arena pública sem ter público que os ouça, é o vazio que contemplam e assim acham que vai o mundo e a sua alma.


Que não vejamos actos de contrição por parte dos homens públicos é significativo. Que a sua consciência tenha andado sempre tranquila igualmente o é. São regressões, a períodos pré-cristãos e pré-antigos. Sem querer insultar os trogloditas, a sua relação com a própria alma a eles regrediu. E se alguém toma decisões ou emite opiniões que influenciam a minha vida não se arrepende, tenho boas razões para andar em preocupação. Não vão mudar de direcção, senão houver uma força externa a que isso os obrigue. Aí é o vento que os domina, e afinal é ele quem nos governa.

Alexandre Brandão da Veiga


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