quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Diogo Vasconcelos - um tributo devido.



Porto, 16 de Maio de 1968 / Londres, 8 de Julho de 2011.

No dia 16 de Julho de 2011, na Igreja da Venerável Irmandade de Nossa Senhora da Lapa, o Senhor Bispo do Porto disse, na missa de corpo presente do Diogo, que ele era um "Evangelizador do digital". Pois era, era também um querido amigo.

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segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Vale a pena ter um império?

O lugar comum da época é o de que a Europa é imperialista e colonialista e por isso tem de pagar o preço dos imensos crimes que cometeu. A verdade é que a Europa é talvez o único conjunto imperial que, tendo-se dissolvido, voluntariamente paga o preço dessa responsabilidade. Se bem virmos, a Europa paga a países subdesenvolvidos, menos poderosos que ela, não um tributo de pacificação, como o império romano teve de fazer, mas uma ajuda substancial. Se eficaz ou não, se bastante ou não, essa é a outra questão. Nem interessa saber se a Europa prejudicou os povos que dominou, o que é puro truísmo em relação a qualquer relação de domínio. O que se trata de saber é qual a especificidade da Europa na sua aventura imperial.


O primeiro movimento de expansão da Europa são as cruzadas. As cruzadas contra o Islão (não as contra os pagãos) são antes do mais reconquistas. Na Península Ibérica isto é evidente, nos Balcãs contra os turcos também. Mais difícil é de explicar o caso de Jerusalém. As cruzadas em Jerusalém no entanto são apenas uma aparente excepção. Os turcos impedem os peregrinos europeus de ir a Jerusalém e a Europa revolta-se. A conquista de Jerusalém é também sob o ponto de vista simbólico uma reconquista. Jerusalém é a pátria d cristão. Não nos podemos esquecer que a Palestina tem um peso superior para cristãos e judeus que o que tem para muçulmanos. Para estes é apenas o terceiro lugar mais santo, enquanto que para aqueles é o primeiro.


No entanto, a ideia de império na Europa é secularmente a ideia de restauração do Império Romano. Os títulos de imperadores são em primeiro lugar o carolíngio e seus descendentes e mais tarde o russo, quando se assume como terceira Roma. Significativo que só no século XIX a ideia e o conceito se espalhou. Napoleão I e depois III por imitação, a Alemanha, Disraeli que faz de Victória imperatriz da Índia, o conceito de império colonial, todos estes fenómenos são oitocentistas.


A ideia de império liberta-se da ideia de restauração (do império romano) ou seja de retornar a si mesmo, à sua verdadeira identidade e unidade, e de forma consistente, apenas no século XIX. Se historicamente a Europa é expansionista desde o fim do século XI esta expansão aparece como restauração sob o ponto de vista ideológico até ao século XIX.

Esta é uma ideia totalmente oposta à identidade turco-mongol. Povos nómadas nas suas origens, a ideia de império foi sempre constitutiva da sua identidade. O turco e o mongol, seja nos Balcãs, seja na Índia, seja na Ásia Central, ou se identifica como nómada ou como império. Este é um dos factores, juntamente com a ausência de cristianismo, que leva os turcos a terem orgulho num império que é em suma banal (foi um entre muitos impérios continentais na História) e que a Europa pelo contrário se sinta constrangida com o facto de ter tido impérios.

Volvidas algumas décadas sobre o fim dos impérios coloniais podemos já fazer um balanço algo mais sereno do que eles representaram na História da Europa. É evidente que ainda existem estudos inflamados sobre a matéria, geralmente propagandísticos ou moralistas, em geral imbuídos do espírito de infantilidade birrenta que caracteriza a nossa época. Mas o leitor, que espero seja adulto, poderá acompanhar-me em alguns reflexões.


Cometeram-se crimes? Tudo depende de saber se o conceito de crime é histórico. Mas mesmo admitindo que o seja, sem dúvida se cometeram crimes. Embora os lacrimejantes oficiais salientem que é a Europa a máxima detentora do género convenhamos que nenhum império foi construído com base em beijos e abraços. É uma prática tenaz ter de se matar alguns maçadores que não querem aceitar o nosso poder. Sem espada, espingarda ou sequer calhau não existe império. Mesmo a casa de Áustria (“casa-te, Áustria feliz”) que construí o seu império sobretudo por via da alcova teve de estar em permanente estado de guerra para salvaguardar o que o tálamo tinha conquistado. Quantificar o horror é sempre temerário e em geral acaba por ser arbitrário. Seja como for, em função da dimensão do império europeu do século XIX, o maior que a História já viu, talvez o sofrimento imposto seja proporcionalmente menor ao de muitos outros impérios enfadonhos que a História viu nascer.


A escravatura de África? Sem dúvida. Mas talvez tenhamos de ter em conta que esta é instituição perene em África. Os egípcios praticaram-na, os núbios também, depois os gregos os romanos, romanos e até recentemente os turcos e os árabes. Quando a Europa começa a negociar escravos em África conta com fontes de distribuição... africanas. A Europa apenas desviou circuitos comerciais já existentes. Se os outros foram mais ineficazes por incompetência não vejo que lhes venha daí mérito. Todos nós descendemos de vítimas e de carrascos e por vezes da vítima dos carrascos e deste carrasco da mesma vítima.


A Europa explorou economicamente as colónias por todo o mundo? Também não conheço império que não o tenha feito e pergunto-me se tem sentido fazer um império se esse não for um dos efeitos pretendidos. A verdade é que a História quantitativa começa-nos a mostrar que, se os impérios coloniais tiveram um efeito importante no take off de muitas economias europeias, nunca representaram senão quantidades pouco significativas das trocas económicas. A Europa negoceia sobretudo com a Europa. Ganhos económicos? No impulso sim, mas a mais valia é intra europeia. Tirando o período de Entre Guerras, que já hoje em dia aparece como um período de decadência imperial, tanto os ganhos económicos como a importância simbólica das colónias é relativamente menor, sobretudo entre as populações.


Por outro lado, os impérios coloniais tiveram custos imensos. A própria Inglaterra, apegada por excelência à sua jóia da coroa, a Índia, desde pelo menos a Primeira Guerra Mundial, começou a preparar-se para sair dela. Porquê? Porque estava a começar a custar mais do que dava ganho. A longo prazo a colónia tem mais custos que dá ganhos. Em pessoas, em cérebros, em ideias, em vidas humanas, em financiamento. Os americanos desde há muito que perceberam que saia mais barato deixar os custos de administração para os próprios povos e apenas fazer negócio com eles. Senão vejamos. A Europa entre os anos 50 e 60 perdeu um imenso património, as suas antigas colónias. Se o facto fosse tão desastroso assim, qualquer pessoa mais avisada diria que estes anos foram de miséria económica na Europa, ou pelo menos de retracção. Ora é precisamente quando a Europa perde as colónias que se expande como nunca o tinha feito sob o ponto de vista económico. Os lacrimejantes oficiais, associando a riqueza da Europa à miséria alheia, esquecem-se sempre de referir esta imensa contraprova.

Em boa verdade, o maior custo que a Europa impôs às outras culturas foi a maior benesse que lhes deu: o choque de civilizações. Nunca na História tanta disparidade de desenvolvimentos se havia visto. Uma Europa no século XIX confronta-se com um mundo que em muitos aspectos se encontrava séculos e mesmo mais de um milénio atrasado em relação a ela. Em alguns casos tecnologicamente, noutros cientificamente, noutros sob o ponto de vista da estrutura económica ou da organização social. A Europa é a primeira cultura que apresenta um pacote completo de vida humana a grande distância dos outros povos e de forma tão intensa. Muitos impérios houve com vizinhos retardados, mas o comum foi sempre o da conquista ser gradual. A Núbia acultura-se ao Egipto aos poucos. A Gália a Roma. Que o mundo inteiro seja invadido por um só paradigma, com tantas variantes e em acréscimo de uma civilização com paradigmas dialécticos é coisa jamais vista na sua dimensão. A verdade é que, ao contrário de mongóis e turcos, deixámos as nossas línguas, instituições, religião e cultura.


Vale a pena? Ora bem se a pergunta foi no pretérito, eu diria que sim no que à Europa respeita. O europeu é pouco orgulhoso dos seus impérios mas tem bons motivos para o estar. Ter tido poder nunca é vergonha para ninguém. Ter tido mais poder que alguma vez alguém teve da História não é desprestigiante quanto a mim. Temos mais razões para estar orgulhosos que velhos detentores de banais impérios continentais asiáticos que, esses, não obstante, sentem orgulho da sua confrangedora banalidade. Se valeria a pena hoje em dia, essa é outra questão. Eu diria que não. A ideia de império consistente na Europa é a do retorno. Um retorno pode ser expansivo, pode ser glorioso. Não significa fechar-se entre portas. Toda a revolução é uma restauração. Até a revolução francesa se instituiu como a restauração do estado natural de liberdade do homem. Por isso para mim o que de mais revolucionário e imperial pode fazer agora a Europa é restaurar-se. Em suma, ser o que é.



Alexandre Brandão da Veiga

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terça-feira, 13 de setembro de 2011

A democracia absoluta

No seu mínimo denominador comum a democracia baseia-se em dois princípios muito simples: todos participam na decisão política e a decisão da maioria prevalece. Vista à luz desta simplicidade a democracia tem dois fundamentos simples. Em primeiro lugar, ninguém pode ser excluído da decisão colectiva, é uma regra de humanidade. Em segundo lugar aceita-se uma retórica universal, a da matemática. Em vez de discutirmos qual é o melhor plano para um país, uma cidade, uma região, temos uma regra matemática que deixa inequívoco que decisão prevalece.



Tudo isto visto de uma forma muito simples. Porque quando procuramos saber quem são “todos” abrem-se distinções segundo a nacionalidade e a idade (estrangeiros e crianças não podem votar), que são as toleradas hoje em dia. Mas não nos podemos esquecer que outras existiram até hoje em dia. Na democrática Inglaterra há cargos públicos hereditários e até há poucas décadas os membros das universidades tinham dois votos, um como membros de uma circunscrição territorial e outro como membros da universidade. E quem contesta que o Reino Unido seja uma democracia? Apenas contesto que seja a mais antiga democracia do mundo, dado que quem sabe a sua História sabe que se trata antes de um feudalismo que se soube adaptar, como Burke bem analisou.



E quando se trata da regra matemática há para todos os gostos, seja sistemas maioritários, proporcionais, e mil outras variantes.



Se bem virmos, os sistemas tradicionais da Europa eram igualmente bipolares. A regra da humanidade baseava-se na integração na Respublica Christiana, na humanidade de cada pessoa, a regra matemática existia também sobre várias formas, seja a da primogenitura (regra reticular de álgebra abstracta e não aritmética), voto por classes, voto por clãs, partidos ou outros sistemas.



Seja qual for o sistema político tem de se basear numa regra de humanidade e numa regra retoricamente aceite, geralmente de natureza matemática, por forma a que decisão seja legítima. Observação banal, não fora esquecida.



A questão actual não passa por aqui, mas pelo fenómeno a que se assiste de entronização da democracia, de uma democracia absoluta, que tudo justifica. Desde que se diga que algo é democrático, fica legitimado. O vício não está na democracia, mas na sua absolutização.
Senão vejamos.



O nosso mais próximo paradigma de absolutização encontra-se na Idade Moderna. O poder real vai-se tornando cada vez mais absoluto, e sobretudo o discurso vai cada vez mais defendendo esse poder. O curioso da coisa é que o discurso democrático incensa essa absolutização quando destrói a nobreza e condena-o quando defende as revoluções liberais. O mesmo discurso que aplaude a destruição da nobreza na Europa continental admira a manutenção dos privilégios quando se trata da inglesa.



O segundo paradigma de absolutização, mais longínquo, é o do império romano e ainda mais longe o das monarquias helenísticas.



Em todos estes casos o processo de absolutização gerou a pacificação da sociedade, mas fez esgotar o princípio a longo prazo.



Numa Europa cada vez mais obcecada com a paz a todo o transe, encontramos um caldo de cultura em que a absolutização pode crescer sem ser incomodada. Como o regime actual é o da democracia, absolutiza-se o princípio. Descobrimos a panaceia universal. Desde que se diga que é para democratizar, tudo fica legitimado. Democratiza-se o ensino, mesmo se os resultados são um abaixamento geral do nível cultural das elites e uma subida relativa da restante população que não o compensa. Mas mais importante, desde que haja aparência democrática, permite-se que o ensino seja elitista de forma arbitrária (e hoje em dia é-o na Europa mais que nunca, por lançar para o mercado criaturas sem preparação sólida em nenhuma matéria e atraindo-os assim para tarefas pouco qualificadas). Democratiza-se a discussão pública, mas tendo por efeito nunca chamar pessoas que realmente conheçam os temas. Democratizar significa aqui sempre afastar a competência, a seriedade, o conhecimento. Em nome da democracia podem-se lançar guerras contra terceiros países. Em nome da democracia, e de uma democracia definida não se sabe bem por quem, condena-se o artista que participa em festas dos partidos mais votados apenas porque não são bem vistos pela cultura “democrática”.



O problema da democracia quando se absolutiza é que se estende para campos onde nunca deveria ter chegado, cria um discurso que perdeu assento na regra humana e na regra matemática. Estabelece-se a priori o que é democrático (quem o faz? É sempre um mistério) e a partir daí lança-se um rolo compressor sobre tudo o que não obedece a esses critérios.



Quando um princípio se absolutiza parasita o que não lhe pertence. Por isso pudemos assistir ao longo de todo o século, isto porque a democracia passou a ser o bem pensar, a “repúblicas democráticas” que eram ditaduras, a partidos “democráticos” que são totalitários, e pensadores da “democracia” que eram anti-democráticos.



Arrancada às suas regras e à sua natureza de regra, a democracia transforma-se em religião, com sacerdotes instalados que lançam anátemas mesmo às maiorias. São eles quem decide o que é democrático. Ainda recentemente na Suíça um referendo não permitiu a facilitação do estatuto de naturalização aos estrangeiros. A grande maioria dos suíços foi contra. E vêm daí vozes levantar-se e a chamar de fascista a maioria dos suíços. Isto mostra que a regra humana e a regra matemática não são o mais importante, mas o ter razão, o ser detentor da razão.



A verdade é que o culto da democracia absoluta mostra assim as suas contradicções internas. Matérias há em que a democracia não é, nunca foi, nem nunca poderá ser a regra. Não somos democráticos na nossa vida privada. Não escolhemos amigos, amantes, contactos sociais por critérios democráticos. Não vamos a votos para determinar de quem gostamos. Não somos democráticos nos gostos. Muita gente pode ser muito influenciável na escolha de filmes, roupa, comida, restaurantes, mas não vai a votos nessas matérias. Não somos democráticos na nossa saúde. Não escolhemos um médico porque tem mais votos. Não somos democráticos na vida laboral. Não preferimos um chefe só porque ele teria sido eleito. Não somos democráticos na gestão do nosso património. Não escolhemos uma zona para investir ou num produto porque tem mais votos. Não somos democráticos na ciência. Uma teoria não prevalece porque se foi a votos. Não o somos na arte e na cultura. Um pintor ou um escritor ou um filósofo não é considerado melhor porque é mais lido ou comprado ou visto. Não somos democráticos no lazer. Não decidimos por votos qual o local de férias ou o filme que vamos ver. Não somos democráticos espiritualmente. As nossas convicções não dependem absolutamente da maioria da população.



Os aspectos mais íntimos, e mais importantes, da nossa vida não se passam de acordo com critérios democráticos. A organização da vida social é deixada à democracia e mesmo assim só parcialmente. E é evidente que nos influencia a vida privada. Mas não a constitui nem lhe dá o principal sentido (quando se dá o caso de dar algum sentido). A grande vantagem pelo menos teórica da democracia é a de não se impor no que é mais importante. E quedar-se (na medida do possível) no espaço público, ou apenas em parte dele.



Se a democracia se quer constitutiva de uma identidade está a pretender não só invadir todo o espaço público, em violação do que ela é, como acaba por invadir o espaço privado. Não só a comunicação em sociedade se obriga a ser democrática, o que é uma perversão da democracia (Aristóteles e Gauss seriam proibidos ou pelo menos esmagados) como o espaço privado é contorcido por critérios democráticos. A democracia é por definição o regime que se contrai. Outros o fazem, mas em mais nenhum deles está no centro do regime contrair-se. A democracia abstém-se. Abstém-se no espaço público de intervir nas ciências, na arte, no diálogo cultural. E no espaço privado abstém-se de determinar a vida das pessoas.



Há dois tipos de pessoas que lutam pela democracia: os que não a têm e os que nada têm senão ela. Os primeiros são heróis, os segundos apenas desprovidos. Quando um regime se absolutiza, ou apodrece ou cai. A primeira hipótese é a do marasmo turco e chinês. A segunda a das revoluções europeias. Ou a podridão ou o sangue a escorrer nas ruas, eis a opção. Querer fundar a Europa na democracia, como encontramos tristemente nos discursos públicos, é fadá-la a este destino. Porque a Europa é bem mais que democracia e é sobretudo no que ela realmente é que vai buscar a sua força.


Alexandre Brandão da Veiga

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