sexta-feira, 1 de julho de 2011

Porque está o francês fora de moda?

That monstrous region, whose dull rivers poor
Keats


O império do inglês tem posto a nu um fenómeno que se tinha manifestado em alguns países europeus, mas também na América Latina, em África e em alguns países asiáticos. O inglês impera, mas às custas da decadência de uma outra língua: o francês.

As causas desta decadência são fáceis de analisar: seguiram-se duas potências hegemónicas anglófonas, o inglês básico (mal falado) é mais fácil que o francês básico (que tem de ser sempre minimamente bem falado). Por outro lado, o inglês é um híbrido em que germânicos e latinos encontram sempre um apoio para sua ignorância, em que é comum haver uma palavra, uma construção, uma mais latina e outra mais germânica. A própria estrutura da língua é mais flexível, mas menos rica em flexões. Factores endógenos à própria língua e ao canto histórico em que se implantou tornaram o inglês a língua do mundo ecuménico. Geralmente um inglês veicular, aculturado, pobre, mas de qualquer modo uma forma de inglês.


Que uma língua franca seja substituída por outra não é em si factor de desgraça nem nos deve fazer chorar muito. Que o persa ou o baazari tenham deixado esse papel na Índia, que o babilónio tenha perdido esse papel, ou o acádico, ou o grego ou o latim, em si mesmo pode ter tido maiores ou menores desvantagens, mas não é a primeira nem será a última vez na História que uma língua franca perde o seu papel. Se fosse por essa razão não choraria a perda do francês. Mais uma para o rol da História.


O que é importante é saber que significado sob o ponto de vista civilizacional – e consequentemente político – tem esta perda do francês.


Em primeiro lugar, o mundo do francês imperante nunca foi monolítico quanto a línguas francas. A Europa culta sabia francês, mas sabia igualmente latim e grego, por vezes italiano, ou alemão, se era comerciante igualmente inglês. Quando o francês impera como língua franca não há monolitismo. É um mundo de muitas línguas francas, mesmo que algumas fossem mortas. Até à primeira guerra mundial muitas teses de doutoramento, seja em filosofia, em matemática, em filologia, em lógica, em teologia eram escritas em Latim. O grego era a base de formação das classes cultas, e ler Dante era tão natural para um inglês culto quanto ler Shakespeare. O francês representa um império que não uniformiza.


Em segundo lugar, o mundo do francês imperante é formado por uma língua com uma estrutura de tal modo complexa para um primeiro manuseamento que exigia a elevação de qualquer locutor que o usasse como língua veicular. O francês elevava, mesmo os medíocres. Ao contrário do inglês, língua minoritária se pensada no seu alto nível, o francês mínimo é exigente. O francês tinha assim um efeito equalizador. Um português que o falasse bem era tendencialmente mais ouvido que um rico inglês que a assassinasse, caindo no ridículo.

Em terceiro lugar, o produto cultural francês, muitas vezes retórico, vácuo, meramente panfletário, era em média de muito maior qualidade que o produto cultural em língua inglesa (do basic English, entenda-se). Mesmo não se percebendo, lia-se Hugo ou Balzac. Hoje em dia o inglês é usado para ler folhetos truísticos ou jornais económicos. Poucos leram Swift, Pope ou Huxley. Era um mundo de uma certa exigência mínima.


Em quarto lugar, o mundo do francês imperante carrega uma ideia de civilização, consequentemente de melhoria, de aperfeiçoamento. Da moda ao estilo de falar, de se mexer, de se expressar. Não se pode falar nesse mundo ou estar no mesmo sem uma certa postura. O mundo do inglês básico, língua que foi criada para o indígena, é o mundo do indígena, não o mundo do Dr. Johnson. O seu paradigma é a selva, não a civilização.


Como antes disse, não verteria uma lágrima por esta queda do francês, se ela não estivesse associada, e não por acaso, à queda de uma civilização, ou seja, de um modo de respirar mais livre pelo homem. Por vezes mantém-se a língua, mas abafa-se o sopro, como aconteceu com o grego do império bizantino. Outras vezes a língua mantém-se a balões de oxigénio, para insuflar o mundo, como aconteceu com o latim até à Renascença. Outras vezes morre como o acádico e babilónico sem que tenhamos de ter uma infinita pena de um mundo que morreu, mas que foi substituído por algo de muito mais infinitamente rico, como o mundo helénico.


Mas que o francês esteja a perder força deixa-me inquieto, mais que pela língua, pelo que ela representa: um mundo plural, diversificado, um mundo de uma complexidade mínima e esforço, um mundo de exigência e um mundo de aperfeiçoamento.


Adivinho no leitor mais impaciente algumas, diria mesmo, muitas reticências. Que verbalismo, que verborreia, que dislate de demonstração! Vá-se lá acreditar que a simples mudança de língua vai causar tanta desgraça! Pois é esse o ponto. É que não é a mudança de língua que causa a desgraça, mas a desgraça que favorece a mudança da língua. Depois desta última consumada, apenas se alimenta o terreno da desgraça.


A alergia que vejo em relação não apenas à língua francesa, mas igualmente ao país e ao povo, sobretudo nos meios tecnocráticos, mostra o desvio que existe entre a representação do poder e a realidade ela mesma. Execram no francês um poder que estes já não têm, assim como aceitam nos ingleses a arrogância que ainda mantêm em relação ao resto da Europa por se terem submetido aos americanos. O que não percebem estes cidadãos é que contribuem assim para o enfraquecimento da Europa. Desprezar a França é sempre desprezar a Europa. A gosto ou a contragosto, mais nenhuma potência cultural foi hegemónica tantas vezes e durante tanto tempo como a França – o desprezo da França é apenas um epifenómeno de uma verdade bem mais vasta, a do desprezo da Europa.


Porque se passarmos pela História da Europa, vemos que nasce em França a primeira literatura vernácula europeia consistente, e que em múltiplos saltos de esplendor encontramos em muitos séculos picos de apogeu cultural. Os trovadores, mas igualmente a poesia de Avinhão, que marcou Petrarca, Ronsard, Rabelais, mais tarde o Grande Século de Racine e Molière, no século XVIII escritores que iniciam o movimento do romance na Europa continental, no XIX Hugo, Balzac, Flaubert, no XX Proust, Gide... Paris é o centro da cultura com a Sorbonne na Idade Média, Abelardo e São Tomás de Aquino é em Paris que florescem. É o centro da matemática, da física e da química entre o fim do século XVIII e o início do século XIX, ainda no século XX oferece homens como Bergson, Broglie, e a mais pujante (embora por vezes, reconheço-o, enfadonha) diversificação das ciências humanas. Ainda hoje em dia é o país do mundo que produz dos maiores matemáticos. E para quem só respeita dados económicos é dos países com das maiores produtividades por hora do mundo, um dos maiores exportadores do mundo, a maior potência turística do mundo.


É certo que um país pode ser poderoso política, económica mas de igual forma culturalmente, e ser no entanto irritante. E é certo que sou insuspeito, porque sou o primeiro a agastar-me quando pretendem exportar discursos como o da pátria dos direitos do homem (neste aspecto, os seus herdeiros são os americanos), do laicismo ou outros elementos meramente folclóricos da cultura francesa. Se de um lado me derem a escolher Poincaré, Fourier (falo dos cientistas, não dos homónimos conhecidos dos políticos), Broglie, Racine e Molière e do outro tiver à minha frente Robespierre, Marat, Mirabeau, Gambetta ou Thiers, a minha escolha está feita de há muito. Reconhecendo os méritos dos segundos, conheço-lhes demais as mediocridades e mesquinhez para os admirar de sobremaneira.


Ninguém se agasta mais com a retórica de exportação da França quanto eu. Porque em geral as retóricas de exportação são produtos de fancaria e porque no caso francês são injustas por diminuírem a grandeza do país. Mas a França pertence aos países de Verdun, aos países do império carolíngio, e foram eles o principal motor da aventura europeia, tenhamos a lucidez e, se se preferir, a humildade, de o reconhecer, nós que não fazemos parte desse núcleo central.

Da minha parte sempre me pareceu da mais elementar justiça admirar a grandeza, tanto quanto desprezar a pequenez. E creio não me deixar iludir na matéria. Um mundo onde se ataca o francês, ataca-se uma cultura, uma civilização. Tenta-se atacar o núcleo dessa civilização. Quem o faz pretende a bem ou a mal um mundo uniforme, a planura, e que o centro do poder esteja fora da Europa. Não gosta de países nem de culturas com vontade própria, salvo se essa vontade for alheia à Europa. Em suma, no dia em que se deitar fora o francês para renascer a poliglotia com o alemão, o italiano, o russo, o espanhol e o inglês, poderia ficar descansado com a qualidade dos sucessores. Mas se apenas se pretende a monotonia do inglês do indígena colonizado, apenas se será secundado pelos analfabetos, os submissos e os enfadonhos. Para quem a vida é um bocejo, que se sinta bem servido.

Alexandre Brandão da Veiga




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