Ciência e cristianismo
Quando produzo uma afirmação assumo na íntegra o ónus da prova. Precisamente o contrário dos que pretendem dissolver a Europa num amálgama de fontes mais ou menos indeterminadas para melhor lhe poderem manipular a identidade. Vejamos por isso até que ponto o cristianismo marcou de forma profunda a própria ciência. Para isso temos de ouvir de novo o que dizem as crianças.
As crianças dizem basicamente o seguinte: o cristianismo destruiu a ciência grega, a ciência é neutra em relação à religião, o cristianismo (sobretudo o catolicismo) opôs-se à formação da ciência contemporânea. As crianças odeiam a complexidade na formulação, o que lhes quadra bem, mas como não falo para crianças, nem as acho competentes para perorar no espaço público, vejamos até que ponto esta argumentação é pura e simplesmente desprovida.
Começando com questões prévias: a ciência contemporânea nasceu em terra cristã, não em terra budista ou muçulmana. E foi obra igualmente de eclesiásticos. Argumento contrário: é evidente, nessa altura toda a Europa era cristã, e eram os eclesiásticos a única classe intelectual. Admitamos. Então afinal a Europa é terra cristã e afinal nem sempre os eclesiásticos foram contra a cultura e a ciência. Algo lhes devemos. Isto porque não conheço muitos imãs que tenham feito obra científica.
Falemos pois de coisas mais sérias. O cristianismo destruiu a ciência grega? A verdade é que o século II e I a.C. já tinham visto uma profunda decadência da ciência grega. E estes séculos têm o ligeiro inconveniente... de serem anteriores ao nascimento do próprio Cristo. Maravilhoso cristianismo que já prejudica antes de ter nascido. O próprio pensamento pagão desde o fim da antiguidade tendeu mais para a doutrinação moral, a retórica e mais tarde a religião (Possidónio, Séneca, Aulo Gélio, Quintiliano; mais tarde Plotino, Jâmblico, Porfírio) que o pensamento científico. O império do pensamento religioso sobre o científico é feito da própria cultura pagã e não do cristianismo. E das últimas marcas da cultura científica que nos sobraram do fim da antiguidade são de um autor cristão, Boécio.
Vejamos a segunda frente de ataque: a ciência é neutra em relação à religião e à ideologia. É curioso que sejam os mesmos que proferem esta afirmação que depois, em toques pós-modernos, neoconstrutivistas, neoestruturalistas (seja lá o que signifiquem estes palavrões), vêm dizer que a ciência é mera construção ritual, pura relatividade, fruto da sociedade e da sua ideologia. Entendam-se por favor, e que não se mude a argumentação consoante o destinatário. É que a própria tese de que o cristianismo destruiu a ciência vem de movimento anticristão francês e inglês da segunda metade do século XIX (não de Nietzsche mas mais de Berthelot e Renan – que pouco sabia de ciência, embora fosse um mestre de estilo, e de físicos menores ingleses). Parte não da física mas de ciências recentes em crise de menoridade, como a química e a biologia, e das ciências humanas, em busca de parasitar o prestígio da física e da matemática. Teve bases e efeitos tipicamente ideológicos, com a formação de manuais escolares que apagaram o cristianismo como fonte de ciência e geraram movimentos persecutórios (Berthelot, aliás um grande químico, e a sua clique, não tão relevante quanto o primeiro, perseguiram cientistas da dimensão de um Duhem ou de um Tannery porque eram católicos, o que toda a gente sabe que torna incompetente para a ciência, como os casos de Pascal e Pasteur demonstram).
O terceiro argumento é bem conhecido. O cristianismo opôs-se à formação da ciência moderna. Basta ver a perseguição a Galileu e a Darwin. A História é bem mais complexa. Darwin foi muito mais perseguido pelos protestantes e só bem mais tarde posto no Index. E as reacções contra o heliocentrismo foram tão acesas entre protestantes quanto entre católicos. E a relação entre Galileu e o papa é bem menos linear que o mito simplista de Brecht (que por sinal nada sabia de física) dá a entender.
Vejamos só alguns exemplos que mostram como o cristianismo contribuiu para a ciência.
O principio da inércia e a ideia de um movimento inercial rectilíneo, por exemplo. Matéria tão relevante quando Mach achou que era central no pensamento da física. E sabemos que Mach influenciou profundamente Einstein. Para os gregos (simplifiquemos um pouco) o movimento perfeito era o circular. Velho padrão de Mandala, de circulo mágico bem conhecido. O cristianismo, e sobretudo Santo Agostinho, denuncia o falsus circulus. Inaugura o pensamento de um movimento rectilíneo com base não apenas da ideia de Criação, mas de...Hapax. Da ideia do evento único da Incarnação de que instaura a História. Newton não poderia ter concebido o princípio da inércia como o fez, se as condições intelectuais não tivessem preparado a evidência da sua natureza fundamental.
São cientistas medievais, como Buridan e Oresme e Nomariarus, clérigos católicos, que estabelecem uma ideia revolucionária: os corpos celestes não têm de ser movidos por inteligências espíritos ou instâncias angelicais. Deus quando criou o mundo deixou postas as leis do movimento, que actuam por si mesmas. A própria possibilidade da existência de leis da física precisou de mais este passo, passo que foi dado no âmbito do pensamento cristão e por clérigos. Damos este facto como evidência, mas precisava de ser estabelecido. Não falamos como os pitagóricos de uma música celestial, mas de leis da física.
Etienne Tempier, esse grande reaccionário, bispo de Paris no século XIII, impede que se ensine o averroísmo em Paris. Curiosa versão da História. O grande movimento revolucionário que impede é o que gera a escolástica, que para os mesmos ideólogos é apenas reaccionário em si mesmo quando lhes dá jeito. Mas porque não gosta Tempier das novas correntes? A questão é sempre mais complexa, mas em síntese, porque é contrário ao cristianismo na sua perspectiva. Porquê? Porque impede, pelo retorno da ideia de inteligências que governam os movimentos celestes, a ideia de lei física imposta por Deus.
A grande revolução científica tem o seu impulso sobretudo no século XVII. Já não falando das influências da escola (clerical) da física de Paris e Oxford em Leonardo da Vinci e Galileu, se pensarmos em todos os grandes criadores de ciência estamos a falar de convictos cristãos, que pensam na ciência numa perspectiva religiosa. Leibniz inventa o cálculo infinitesimal a tentar perscrutar o pensamento divino e daí retira consequências na sua teodiceia, Pascal, Newton, entre tantos outros são bons exemplos disso. Sem o Padre Mersenne não se teria formado o modo dialogante de fazer ciência. Sem os jesuítas muita da ciência moderna não se teria estendido até à Rússia. Ainda no século XX o abbé Lemaître, um padre belga, é o primeiro a retirar a teoria do Big Bang da teoria da relatividade generalizada. Na altura foi vilipendiado por misturar teologia com ciência, quando mais tarde se demonstra ter razão, mas apenas para ser apagado o seu mérito nessa descoberta. Isto para já não falar num célebre monge austríaco que cria a ciência da genética clássica (Mendel), de um cristianíssimo matemático que cria a álgebra dos transfinitos e a teoria dos conjuntos (Cantor), ou de um padre Fourier (peculiar, é certo) que de um só golpe inova na teoria do calor e na matemática. Os exemplos poderiam ser desenvolvidos até ao infinito.
Tentando sintetizar algo que é realmente complexo, apenas podemos dizer que foram cristãos e enquanto cristãos quem criou a ciência moderna. Que foi o cristianismo que fundou não apenas o modo, mas igualmente muitas das possibilidades da ciência moderna. Que foi numa civilização cristã que nasceu a dita ciência. Que se diga que a ciência é meramente ideologia ou ritual apenas mostra desconhecer o que seja ciência. Que se diga que esta é inerte em relação ao ambiente em que nasce é igualmente dislate. A ciência não nasce como libertação em relação ao cristianismo e se se desenvolve muitas vezes nesse sentido isso apenas mostra que quem a faz desconhece com frequência as bases do que pratica. Não é consequência da ciência, mas em geral instinto de novo-rico, de menorizado (Comte que me lembre contribuiu menos para a ciência que Leibniz, Pascal ou Cantor – ou mesmo Einstein, que era crente em Deus, ou ainda Maxwell).
Resta um argumento. Pode-se aceitar que a ciência europeia é construção cristã e que tanto os cristãos como o cristianismo contribuíram para o seu desenvolvimento, mas isso é afinal apenas História. O “apenas” quando é usado diz geralmente algo mais sobre quem o usa que sobre o que fala. Quando Hegel fala do “apenas psicológico”, diz mais sobre ele que sobre a psicologia. Mas ainda aqui temos de reconhecer dois factos: em primeiro lugar, não seria então necessário desacreditar tanto as origens cristãs da ciência europeia, caso elas fossem tão irrelevantes hoje em dia; em segundo lugar, resta saber que revoluções científicas estamos a preparar e o que elas preparam hoje em dia. Se concluirmos que estamos apenas a desenvolver sem revolucionar (no que a segunda metade do século XX tem sido mais useira e vezeira, salvo tecnologicamente falando), talvez seja necessário perguntar o que deixou de alimentar a ciência. Se acreditamos que estamos a preparar novas revoluções científicas, é preciso demonstrar em quê elas saltam fora do paradigma da ciência europeia e se isso vale a pena.
Lembro a frase de Heisenberg: quem disser que sou cristão exagera, quem disser que não sou exagera igualmente. Frase de alguém que esteve sempre bem longe das religiões institucionais. Mas é evidente que Heisenberg é menos relevante para a ciência que tecnocratas da política que decidiram definir o que é Europa. ^
Alexandre Brandão da Veiga
(mais)