terça-feira, 22 de março de 2011

Ciência e cristianismo


Quando produzo uma afirmação assumo na íntegra o ónus da prova. Precisamente o contrário dos que pretendem dissolver a Europa num amálgama de fontes mais ou menos indeterminadas para melhor lhe poderem manipular a identidade. Vejamos por isso até que ponto o cristianismo marcou de forma profunda a própria ciência. Para isso temos de ouvir de novo o que dizem as crianças.

As crianças dizem basicamente o seguinte: o cristianismo destruiu a ciência grega, a ciência é neutra em relação à religião, o cristianismo (sobretudo o catolicismo) opôs-se à formação da ciência contemporânea. As crianças odeiam a complexidade na formulação, o que lhes quadra bem, mas como não falo para crianças, nem as acho competentes para perorar no espaço público, vejamos até que ponto esta argumentação é pura e simplesmente desprovida.

Começando com questões prévias: a ciência contemporânea nasceu em terra cristã, não em terra budista ou muçulmana. E foi obra igualmente de eclesiásticos. Argumento contrário: é evidente, nessa altura toda a Europa era cristã, e eram os eclesiásticos a única classe intelectual. Admitamos. Então afinal a Europa é terra cristã e afinal nem sempre os eclesiásticos foram contra a cultura e a ciência. Algo lhes devemos. Isto porque não conheço muitos imãs que tenham feito obra científica.

Falemos pois de coisas mais sérias. O cristianismo destruiu a ciência grega? A verdade é que o século II e I a.C. já tinham visto uma profunda decadência da ciência grega. E estes séculos têm o ligeiro inconveniente... de serem anteriores ao nascimento do próprio Cristo. Maravilhoso cristianismo que já prejudica antes de ter nascido. O próprio pensamento pagão desde o fim da antiguidade tendeu mais para a doutrinação moral, a retórica e mais tarde a religião (Possidónio, Séneca, Aulo Gélio, Quintiliano; mais tarde Plotino, Jâmblico, Porfírio) que o pensamento científico. O império do pensamento religioso sobre o científico é feito da própria cultura pagã e não do cristianismo. E das últimas marcas da cultura científica que nos sobraram do fim da antiguidade são de um autor cristão, Boécio.

Vejamos a segunda frente de ataque: a ciência é neutra em relação à religião e à ideologia. É curioso que sejam os mesmos que proferem esta afirmação que depois, em toques pós-modernos, neoconstrutivistas, neoestruturalistas (seja lá o que signifiquem estes palavrões), vêm dizer que a ciência é mera construção ritual, pura relatividade, fruto da sociedade e da sua ideologia. Entendam-se por favor, e que não se mude a argumentação consoante o destinatário. É que a própria tese de que o cristianismo destruiu a ciência vem de movimento anticristão francês e inglês da segunda metade do século XIX (não de Nietzsche mas mais de Berthelot e Renan – que pouco sabia de ciência, embora fosse um mestre de estilo, e de físicos menores ingleses). Parte não da física mas de ciências recentes em crise de menoridade, como a química e a biologia, e das ciências humanas, em busca de parasitar o prestígio da física e da matemática. Teve bases e efeitos tipicamente ideológicos, com a formação de manuais escolares que apagaram o cristianismo como fonte de ciência e geraram movimentos persecutórios (Berthelot, aliás um grande químico, e a sua clique, não tão relevante quanto o primeiro, perseguiram cientistas da dimensão de um Duhem ou de um Tannery porque eram católicos, o que toda a gente sabe que torna incompetente para a ciência, como os casos de Pascal e Pasteur demonstram).

O terceiro argumento é bem conhecido. O cristianismo opôs-se à formação da ciência moderna. Basta ver a perseguição a Galileu e a Darwin. A História é bem mais complexa. Darwin foi muito mais perseguido pelos protestantes e só bem mais tarde posto no Index. E as reacções contra o heliocentrismo foram tão acesas entre protestantes quanto entre católicos. E a relação entre Galileu e o papa é bem menos linear que o mito simplista de Brecht (que por sinal nada sabia de física) dá a entender.

Vejamos só alguns exemplos que mostram como o cristianismo contribuiu para a ciência.

O principio da inércia e a ideia de um movimento inercial rectilíneo, por exemplo. Matéria tão relevante quando Mach achou que era central no pensamento da física. E sabemos que Mach influenciou profundamente Einstein. Para os gregos (simplifiquemos um pouco) o movimento perfeito era o circular. Velho padrão de Mandala, de circulo mágico bem conhecido. O cristianismo, e sobretudo Santo Agostinho, denuncia o falsus circulus. Inaugura o pensamento de um movimento rectilíneo com base não apenas da ideia de Criação, mas de...Hapax. Da ideia do evento único da Incarnação de que instaura a História. Newton não poderia ter concebido o princípio da inércia como o fez, se as condições intelectuais não tivessem preparado a evidência da sua natureza fundamental.

São cientistas medievais, como Buridan e Oresme e Nomariarus, clérigos católicos, que estabelecem uma ideia revolucionária: os corpos celestes não têm de ser movidos por inteligências espíritos ou instâncias angelicais. Deus quando criou o mundo deixou postas as leis do movimento, que actuam por si mesmas. A própria possibilidade da existência de leis da física precisou de mais este passo, passo que foi dado no âmbito do pensamento cristão e por clérigos. Damos este facto como evidência, mas precisava de ser estabelecido. Não falamos como os pitagóricos de uma música celestial, mas de leis da física.

Etienne Tempier, esse grande reaccionário, bispo de Paris no século XIII, impede que se ensine o averroísmo em Paris. Curiosa versão da História. O grande movimento revolucionário que impede é o que gera a escolástica, que para os mesmos ideólogos é apenas reaccionário em si mesmo quando lhes dá jeito. Mas porque não gosta Tempier das novas correntes? A questão é sempre mais complexa, mas em síntese, porque é contrário ao cristianismo na sua perspectiva. Porquê? Porque impede, pelo retorno da ideia de inteligências que governam os movimentos celestes, a ideia de lei física imposta por Deus.

A grande revolução científica tem o seu impulso sobretudo no século XVII. Já não falando das influências da escola (clerical) da física de Paris e Oxford em Leonardo da Vinci e Galileu, se pensarmos em todos os grandes criadores de ciência estamos a falar de convictos cristãos, que pensam na ciência numa perspectiva religiosa. Leibniz inventa o cálculo infinitesimal a tentar perscrutar o pensamento divino e daí retira consequências na sua teodiceia, Pascal, Newton, entre tantos outros são bons exemplos disso. Sem o Padre Mersenne não se teria formado o modo dialogante de fazer ciência. Sem os jesuítas muita da ciência moderna não se teria estendido até à Rússia. Ainda no século XX o abbé Lemaître, um padre belga, é o primeiro a retirar a teoria do Big Bang da teoria da relatividade generalizada. Na altura foi vilipendiado por misturar teologia com ciência, quando mais tarde se demonstra ter razão, mas apenas para ser apagado o seu mérito nessa descoberta. Isto para já não falar num célebre monge austríaco que cria a ciência da genética clássica (Mendel), de um cristianíssimo matemático que cria a álgebra dos transfinitos e a teoria dos conjuntos (Cantor), ou de um padre Fourier (peculiar, é certo) que de um só golpe inova na teoria do calor e na matemática. Os exemplos poderiam ser desenvolvidos até ao infinito.

Tentando sintetizar algo que é realmente complexo, apenas podemos dizer que foram cristãos e enquanto cristãos quem criou a ciência moderna. Que foi o cristianismo que fundou não apenas o modo, mas igualmente muitas das possibilidades da ciência moderna. Que foi numa civilização cristã que nasceu a dita ciência. Que se diga que a ciência é meramente ideologia ou ritual apenas mostra desconhecer o que seja ciência. Que se diga que esta é inerte em relação ao ambiente em que nasce é igualmente dislate. A ciência não nasce como libertação em relação ao cristianismo e se se desenvolve muitas vezes nesse sentido isso apenas mostra que quem a faz desconhece com frequência as bases do que pratica. Não é consequência da ciência, mas em geral instinto de novo-rico, de menorizado (Comte que me lembre contribuiu menos para a ciência que Leibniz, Pascal ou Cantor – ou mesmo Einstein, que era crente em Deus, ou ainda Maxwell).

Resta um argumento. Pode-se aceitar que a ciência europeia é construção cristã e que tanto os cristãos como o cristianismo contribuíram para o seu desenvolvimento, mas isso é afinal apenas História. O “apenas” quando é usado diz geralmente algo mais sobre quem o usa que sobre o que fala. Quando Hegel fala do “apenas psicológico”, diz mais sobre ele que sobre a psicologia. Mas ainda aqui temos de reconhecer dois factos: em primeiro lugar, não seria então necessário desacreditar tanto as origens cristãs da ciência europeia, caso elas fossem tão irrelevantes hoje em dia; em segundo lugar, resta saber que revoluções científicas estamos a preparar e o que elas preparam hoje em dia. Se concluirmos que estamos apenas a desenvolver sem revolucionar (no que a segunda metade do século XX tem sido mais useira e vezeira, salvo tecnologicamente falando), talvez seja necessário perguntar o que deixou de alimentar a ciência. Se acreditamos que estamos a preparar novas revoluções científicas, é preciso demonstrar em quê elas saltam fora do paradigma da ciência europeia e se isso vale a pena.
Lembro a frase de Heisenberg: quem disser que sou cristão exagera, quem disser que não sou exagera igualmente. Frase de alguém que esteve sempre bem longe das religiões institucionais. Mas é evidente que Heisenberg é menos relevante para a ciência que tecnocratas da política que decidiram definir o que é Europa. ^



Alexandre Brandão da Veiga

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quarta-feira, 9 de março de 2011

A economia de mercado

Os idólatras de uma construção meramente técnica da Europa dizem que a Europa é economia de mercado. Um dos miraculosos critérios de Copenhaga. A copulativa é aqui assustadora. É? Ou tem como condição? Trata-se de duas coisas bem distintas.

Tenho tido o cuidado de salientar que não faço análise económica e nem sequer política, mas trabalho apenas no subterrâneo da política, no que a fundamenta. Não venho pois aqui fazer laudas ou diatribes sobre a economia do mercado. O que me preocupa é saber o que sustenta este discurso e o que significa sob o ponto de vista civilizacional.

Toda a economia no limite é de mercado. Em muitos aspectos é inevitável que o seja. Por mais planificada que seja uma economia, se não houver pão, este não pode ser distribuindo em grande quantidade e baixo preço. Quando muito ficciona-se pão, como fez a Albânia (país ídolo dos detentores das esquerdas doces antes de se converterem à política moral), ou a China ou a Roménia. E bem se pode inundar o mercado de manuais de cálculo tensorial que não é por isso que a sua procura aumenta sem mais.

A economia de mercado é manifestação de liberdade e fomenta a liberdade. A dimensão patrimonial é fundamental na vida humana. O que eu como, visto, onde habito, no que trabalho são sectores fundamentais da minha liberdade, manifestam os meus gostos e a minha opção de vida. Todas alternativas à economia de mercado mostraram-se, além de ineficientes no seu conjunto, limitadoras da liberdade.

A economia de mercado tem um efeito redistributivo muito potente. Costuma-se dizer que o Estado distribui melhor e a economia de mercado produz melhor. Este lugar comum está de há muito afastado. Nenhuma televisão privada atingiu a excelência da BBC nos seus tempos áureos, ou da ARTE nos seus bons anos. Há certos tipos de bens que consoante os países e a épocas o Estado produziu melhor que os privados, seja na saúde, na cultura, na educação, em alguns casos na infra-estrutura. Os serviços públicos nórdicos são mais bem eficientes que as empresas do Burkina Faso. De igual forma a economia de mercado por via da concorrência tem permitido o acesso a bens e serviços a camadas de população que nem com eles sonhavam há anos atrás. Tudo depende da época, do país e do modelo ético de organização que exista.
Só por isto seria legítimo política e civilizacionalmente que a Europa se baseie na economia de mercado. É uma visão mais adulta, mais realista da vida, uma visão mais livre e generosa do ser humano.

Mas coisa bem diversa é esquecer as taras do mercado.

Os critérios do mercado são anti-democráticos. O poder de voto não é igual para todos. Gera desigualdades tanto mais insuportáveis quanto entra em crise. Se no momento de crescimento todos beneficiam ainda que desigualmente, em momentos de crise os mais frágeis sofrem mais, e as redistribuições gerais dependem de factores de depredação mais que de mérito. O mercado opõe-se à meritocracia em muitos aspectos. Os depredadores ganham sempre em mercados instáveis.

O mercado deixado a si mesmo despreza o ser humano. Um velho, um analfabeto, uma criança enquanto não têm valor económico, são deixados de lado pelo mercado. São outras instituições, sejam elas formais ou informais, que atribuem valor à fragilidade humana. Por isso, mesmo nos países ditos mais liberais, o mercado nunca actua sozinho. Daí que se afirmar a natureza fundante do mercado é esquecer o papel que nas grandes economias capitalistas o evergetismo, sobretudo de dimensão cristã, tem no seu equilíbrio e no equilíbrio dos seus efeitos. Quem conhece o modo de vida do proletário do século XIX, ou as formas de proletarização actuais, obnubiladas, precarizadas, em ambientes laborais de humilhação e opressão que ainda hoje em dia são permitidos sabe até que ponto o ser humano pode efectivamente ser destruído por uma lógica de poder económico. Porque a economia de mercado, endeusada por si mesma, esquece os homens concretos que nela vivem. Com o seu poder e as suas fraquezas, as suas frustrações e a sua crueldade, mas também a sua generosidade.

O mercado deixado a si mesmo despreza a cultura, o património, em suma é indiferente às identidades humanas. Mesmo quando na aparência se escora nestas identidades (como vemos pelas especializações em finanças muçulmanas, ou indígenas) irreleva-lhes o centro dessa cultura, apenas aproveita o facto de ela existir como oportunidade de negócio. Assim como o inválido não é um humano que sofre, mas apenas uma oportunidade de vender uma prótese, o índio não é um ser humano que vive de certa forma, mas apenas um consumidor de objectos de penas.

Em suma, falar só de mercado é desprezar a democracia, o ser humano, e pôr em causa a cultura e a sua identidade.

A economia de mercado assenta numa antropologia e gera uma antropologia. Em cada cultura tem formas bem diversas. O que se produz, como se produz, quem produz, para quem produz depende de cultura para cultura. Mas gera igualmente uma antropologia. Enquanto só e apenas economia de mercado é indiferente à cor, raça, credo, não por amor ao ser humano, mas apenas por este lhe ser absolutamente indiferente. Sem assentar noutra antropologia que não em si mesma, reduz-se à indiferença perante a alegria e o sofrimento humanos. Uma Europa exclusivamente baseada na economia do mercado seria assim indiferente à sorte humana.
Mas, pode-se contra argumentar, os critérios de Copenhaga contém a democracia na sua referência. Quais sejam as limitações da democracia já o vimos. Esta referência conjuntamente com o mercado apenas tempera o lado anti-democrático do mercado. Não apaga o seu lado esmagador das culturas, da identidade e nem forçosamente de uma determinada visão do ser humano que só a cultura e a identidade transportam.

O pior ainda é dizer que a Europa é economia de mercado. Dizer que qualquer país que preencha os critérios de Copenhaga é um país europeu resulta de uma pobreza intelectual, de uma falácia lógica e de uma mendicidade espiritual sem nome. Porque assim sendo tanto os Estados Unidos como o Japão, Marrocos ou a Turquia serão países europeus. Porque demonstra que o que são condições fundamentais passam por ser essência. Ou seja, que a essência da Europa é meramente instrumental, condicional, e acessível por qualquer um. Que mesmo que apenas que formalmente se atinjam esses critérios, qualquer casca “europeia” (e que casca) é o que é a Europa. A Europa fica reduzida assim a uma casca.

Vejamos pois que imagem da Europa se desprende deste fetiche da economia do mercado. Se a Europa não tem uma economia de mercado mas é, então daqui decorre que a Europa é uma realidade meramente instrumental. E este resultado, se não é querido por todos os cultores dos critérios de Copenhaga, é expressamente querido e propagandeado pelos subservientes a políticas americanas que dizem que a Europa não é uma cultura, mas uma mera encruzilhada de culturas. A Europa não tem substância, substância é coisa que as outras culturas possuem: os turquemenos, os persas, os chineses e os turcos. Os europeus, esses reduzem-se a ser uma encruzilhada, um ponto de encontro. Vivem sem abrigo, ao sabor do clima e dos visitantes que passam nas três vias. A Europa é a trivialidade em suma.

O lugar comum diz que se quer uma economia de mercado e não uma sociedade de mercado. Seja. Cada um que escolha a sua fórmula. Mas assim como me parece infantil fazer de conta que a economia de mercado não existe e existirá sempre, sob uma ou outra forma, ou num ou noutro grau, parece-me igualmente infantil, e igualmente dogmatismo puro, esquecer o que pode ter de tarada uma economia de mercado deixada a si mesma ou apenas temperada pela democracia ou o “acquis communautaire”. Numa Europa construída com base apenas nestes critérios, apenas uma coisa está ausente: o ser humano. É um deserto em que existe de tudo, menos europeus, com a sua cultura, a sua maneira de viver, a sua civilização. É um mundo feito por mortos de inteligência para mortos de espírito. E em que só mortos de uma e outra coisa acreditam.




Alexandre Brandão da Veiga

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quinta-feira, 3 de março de 2011

António Toyota Costa?


António Costa anunciou hoje que será candidato à Câmara Municipal de Lisboa nas próximas autárquicas de 2013. À vista desarmada, este parece ser um gesto sábio. O vazio do poder pós-Sócrates é mais propício a divisões estéreis do que à fecunda realização do ofício. Por outro lado, com um só gesto, António Costa sugere que a obra feita lhe garante a recondução na Capital, a ausência de um rival no perímetro e a promessa de um tapete encarnado para Belém, em 2016, à imagem de Jorge Sampaio.
Tudo faz sentido. Ou talvez não. A recondução na CML, como tudo o resto, depende da obra feita. E a desculpa da falta de verba não pode ser tapada com mais empréstimos e dívida para a CML. Terá de haver capacidade de decisão e resultados. Podemos avaliar os próximos 2,5 anos pela performance dos últimos quatro. E lembramo-nos que também o Colosso da Babilónia tinha pés de barro, não resistindo às cheias.

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