Bento XVI um papa mal amado? VI
3. Herança grega esquecida
A herança grega tornou-se particularmente estranha ao espaço público. Quanto mais é citada, mais se percebe que é vista apenas em lampejos, em pequenos fragmentos, que lhe retiram todo o conteúdo (1).
O esquecimento da herança grega tem efeitos na concepção que se tem da Europa e da união das igrejas. E isto duplamente: a herança grega pagã e a herança grega cristã.
Os católicos ocidentais, e nisto os portugueses têm acrescidas culpas, comportam-se como se não houvesse cristianismo oriental ou como se fosse mero exotismo. Esquecem-se que a sua base da sua fé foi definida por sete concílios que ocorreram todos no oriente e em língua grega.
Esquecem-se que quando falam em São João Crisóstomo, São João Damasceno, São Basílio Magno, São Gregório de Nyssa estão a falar de santos da igreja católica. Quando ouvem “o Verbo fez-se carne” muitos devem pensar que foi uma categoria gramatical que passou a ter estatuto de talho. Sem saber que é de “Logos" e “sarx”que se fala fica toda a enunciação da fé por perceber (2).
Este papa tem falado insistentemente nas suas catequeses destes santos gregos (3), demonstrando aos católicos que são ortodoxos ocidentais, é verdade, mas ortodoxos, que o que nos une é bem mais fundamental que o que nos divide (4).
A dupla herança é fundamental, somos herdeiros do Logos grego e do Logos cristão. É no cristão que vivem plenamente os dois, ou melhor, é nele que se fazem um só. E lembrar esse facto tem sido uma das lutas deste papa.
4. Batalha da inteligência
Este papa percebeu que a união das igrejas tem de passar pela inteligência também. Estudos sobre o filioque (importantes para os ortodoxos) (5), ou sobre a sola scriptura e a relação com a Tradição (importantes para os protestantes) têm sido essenciais para aproximação entre igrejas.
Este papa percebeu que o trunfo da modernidade é a confiança que diz ter na razão. Pelo menos publicamente (não é por acaso que há niilismos). Que não é lutando pelo lado afectivo que se mostra à modernidade as suas contradições, os seus axiomas pouco fundados.
Percebeu que o gesto humanitário é essencial, mas não basta porque passa pela grelha de leitura da modernidade como mero humanitarismo. As Madres Teresas são tratadas no fundo apenas como grandes humanitárias. Ou seja, que escapa o essencial. O cristianismo não é um humanitarismo e não é só afecto.
Percebeu que a grande luta contra as pretensões da modernidade à sapiência (não contra a modernidade) trava-se no plano da inteligência. Ir à igreja não é uma forma de descansar a cabeça. A igreja descredibiliza-se quando é só o pagador de promessas que vai a Fátima. Quando é só a pessoa que se ajoelha na missa. A modernidade tem grelhas de leitura para isso: são superstições, falta de cultura científica, folclore, mito, neuroses. E a modernidade fica descansada. Não se pode espantar que muitas vezes o católico contemporâneo se sinta algo coberto de ridículo. Lê os seus gestos e palavras com a luz da modernidade.
A modernidade só é afectada se for defrontada na sua falência intelectual e espiritual. Se se mostrar que nasceu do cristianismo e que, ao esquecer isso, funciona em mera inércia de movimento, rotineiramente e sem capacidade criativa (6).
O mal não está no que a modernidade trouxe, mas o facto de achar que se funda a si mesma. A discussão sobre os fundamentos cristãos da Europa é significativo disso. A Europa seria anti-histórica, nasce da mera vontade, ou seja da birra.
1 Sintoma significativo a citação do discurso de Péricles em Tucídides no projecto da Constituição europeia, como se a cultura grega se reduzisse ou tivesse tido o seu apogeu em Atenas e durante uma crise bélica. Citar Péricles como epítome do pensamento grego seria o mesmo que citar Símaco ou Libânio como auge do pensamento tardoantigo.
2 A frieza e indiferença com que os cristãos ocidentais tratam as perseguições dos orientais, seja no Egipto, actualmente no Iraque, na Palestina, na Turquia, no Paquistão ou no Sudão, por exemplo, é um dos sinais desta profunda ignorância e submissão aos ditames de uma modernidade apressada.
3 Referiu mesmo Santo Ephraim, o que não é espantoso tendo em conta a sua imensa cultura teológica, mas não deixa de ser corajoso de fazer em público.
4 Muitas vezes os católicos instalam-se na plenitude do depósito da fé, esquecendo-se que frequentemente quem tem parte dos tesouros os usa melhor. As ortodoxias orientais desenvolveram temas com maior profundidade que a tradição latina, nomeadamente o da divinização do homem, o da ligação entre a essência e o acto (São Gregório Palamas é exemplar neste aspecto), o esicasmo. E usam com frequência uma bela expressão,”nascido para o Céu”, para significar algo mais que a morte.
5 Neste aspecto gostava de referir um grande teólogo pouco conhecido, Bruno Forte, que tem algumas das mais inspiradas páginas sobre a questão.
6 Sob o ponto de vista secular este papa apresenta um traço marcante. O da superação da luta entre teólogos e pastores para o exercício do magistério que ocorreu entre os séculos III e IV sobretudo, e que deixou marcas na Igreja. Trata-se de um papa que não é apenas teólogo, o que sendo paradoxalmente raro não é novo, mas de um papa que se assume publicamente no seu magistério como teólogo.
1 comentários:
Esqueceu-se de falar do camauro...
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