quarta-feira, 26 de maio de 2010

Conservadores e progressistas

No clássico livro de Kirk sobre o estado de espírito conservador (talvez melhor tradução para o “The Conservative Mind”, que “o pensamento conservador”), surge uma fileira de criaturas, a maior parte das quais decentes, embora nem todas, mas em geral, convenhamos, muito pouco eróticas. Tirando o conde de Tocqueville, esse grande estudioso da democracia e o sempre comovente Burke, poucas personagens me suscitam real interesse. Se o livro não fosse tão centrado no mundo anglo-americano, o que não lhe retira interesse, mas torna-o algo provinciano, poderia referir nomes tão ou mais importantes do pensamento conservador e bem mais excitantes, como Ortega y Gassett, Thomas Mann, Chateaubriand, Popper, Goethe, Baudelaire e De Maistre, cada um no seu género e à sua maneira bons representantes do pensamento conservador.

A primeira ideia popular é a de que não existe um pensamento conservador. Um conservador não pensa, apenas existe. De seguida surge outra ideia difusa, a de que o conservador se opõe ao progresso, logo ao desenvolvimento económico, à democracia. O mundo mais uma vez é simples e está explicado.

Como a destrinça entre a esquerda e a direita, que cheira mais a explicativa do que sabe, a divisão entre conservadores e progressistas é frequentemente artificiosa, fonte de equívocos e pouco útil.

Há basicamente duas espécies de progressistas. Uns definiram de antemão o que seja o Futuro da humanidade. E tudo o que se desvie desse futuro que conhecem por iluminação divina deixa de ser progressista. Atenção porque este futuro foi incarnado por laicos, radicais, comunistas, mas também pelos sacerdotes da economia de mercado e da democracia como forma última e mais perfeita da humanidade. São os progressistas escatológicos. A segunda espécie de progressistas é composta dos que estão insatisfeitos com o que existe só porque existe. Por isso aceitam qualquer mudança. O facto de ser mudança já é bom. São os progressistas fracturantes.

Há igualmente duas espécies básicas de conservadores. Uns reconhecem não apenas coisas boas no passado, mas crêem que a vida é tradição, ou seja, passagem de testemunho. São os conservadores tradicionalistas. Outros recusam a mudança porque o passado é sempre melhor que o futuro. São os conservadores passeístas.

A destrinça entre conservador e progressista tem a ver com a relação do homem com o tempo. Nada tem a ver com a destrinça entre revolucionários e reformadores. Houve revoluções conservadoras e mesmo reaccionárias (Savonarola, Juliano o Apóstata) e reformas notoriamente progressistas (as de Bismarck na Alemanha ou as de Adenauer ou De Gaulle). A grande diferença entre um revolucionário e um reformador tem a ver não com o tempo directamente, mas com a velocidade.

Se conservador e progressista são conceitos que têm a ver com o passado e o futuro questão diversa é a que os distingue em relação ao presente. Os dois extremos que definem esta distinção encontram-se nos reaccionários e oportunistas. O reaccionário é o que nega o presente, seja em nome do passado ou do futuro, o oportunista é o que o aceita por uma ou outra razão. Oportunista é um conceito francês do século XIX, como tantos outros em uso na política, e que não tem a carga negativa que depois se deu. Oportunista é o que aproveita a oportunidade, embora tenha de se reconhecer que tipicamente o faz sem grande elegância.

Existem por isso toda a espécie de combinatórias nesta matéria. Há conversadores oportunistas e reformadores (Disraeli e Bismarck), reaccionários revolucionários (conservadores como Mao Tse Tung ou progressistas como Robespierre), progressistas reformistas reaccionários (como Thatcher) e assim por diante.

O grande problema é que estas destrinças mais uma vez têm um significado político muito variável e muitas vezes o mesmo projecto é defendido por conservadores e progressistas de toda a espécie. É esse o caso do projecto europeu.

Quem são os conservadores? A resposta a esta pergunta mostra a vacuidade do conceito. Conservadores são os de da esquerda à direita defendem um conceito de Estado-Nação forjado no século XIX. Conservadores igualmente os que defendem uma Europa meramente burocrática tal como criada nos anos de 1950. Conservadores o que em França lutam pela manutenção dos acquis sociaux. Mas igualmente os que em Inglaterra pretendem manter uma concepção de mercado construída um quarto de século antes. Conservador Brejnev que tenta manter a gerontocracia no poder. Conservadoras as democracias que se pretendem impor como modelo ao mundo. Conservadores os que da esquerda à direita têm uma concepção da Europa baseada no fim dos anos de 1940, em que a Europa é a Europa NATO, e em consequência querem a Turquia na União Europeia. Conservadores estes e tantos outros que em miscelânea vaga se comprazem de tudo e de coisa nenhuma.

Progressistas, conservadores, reformistas revolucionários, oportunistas e reaccionários são todos eles conceitos ligados ao tempo de uma forma ao de outra, ao passado ao presente, ao futuro ou à velocidade. Nada nos dizem sobre conteúdos. Têm a vantagem sobre as ideias de esquerda e direita, que em si nada dizem e apenas resultam de falta de imaginação topológica, de ao menos em cada época histórica nos permitirem definir um movimento, um vector, se se quiser. Mas exactamente por isso nada nos dizem sobre os conteúdos que se defendem. Defender a protecção social é progressista no século XIX, conservador no XXI. Defender o mercado pode ser progressista ou conservador consoante os momentos históricos.

É evidente que colocado em cada momento histórico e em cada situação ser conservador ou progressista ou revolucionário e assim por diante não é irrelevante. Como figuras vectoriais que são podem ser muito importantes para conformar as vidas das pessoas, para lhes modificar a maneira de estar, de viver, de sentir. Mostram direcções e sentidos sob o ponto de vista geométrico, denotam forças em acção. Mas mais uma vez nada dizem sobre para onde nos dirigimos, o que queremos, o que nos interessa, o que nos move.

No entanto, têm sido estes os conceitos sobre os quais se tem construído o discurso político dos últimos duzentos anos. Sobre meras metáforas temporais ou espaciais primitivas como estas se tem tentado dar algum sentido ao discurso político, quanto nenhum destes conceitos transporta em si nenhum sentido. Se conseguíssemos transformar o discurso em imagens teríamos como que um ballet em que uns se dirigem mais para um lado da cena e outros para outro, uns saltam mais depressa, outros fazem piruetas, outros ainda aceitam o solo em que pisam, ou outros ainda pretendem escapar à força da gravidade. Conceitos mais potentes pelo fascínio que concedem que pela sua força explicativa, mostram um discurso político que se resguarda em meros símbolos e perde todo o contacto com a realidade.

Mas tendo eu criticado as mais simbólicas traves mestras do discurso político da nossa época longa, vejo-me obrigado a fornecer uma alternativa. Para quem queira ver a política com olhos adultos, ela tem de se basear numa tripla ideia: poder, valores e interesses. É sobre esses três eixos que toda a política deve ser analisada, e no caso que me interessa, a política europeia. É pois de um discurso político adulto que tentarei tratar da próxima vez.



Alexandre Brandão da Veiga

1 comentários:

Anónimo disse...

Li com muito interesse a sua douta lição. A Dona Isilda Pegado em que categoria se inscreve?