segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Tradição e imitação I







A modernidade (e a pós-modernidade seja o que isso for) construiu-se contra a tradição e contra a imitação. É este o lugar comum. Se virmos o comentador, o intelectual mediano, o jornalista, é esse em geral o lugar comum que defendem.

Temos de ser originais, quebrar com o passado, destruir a herança, seguir o nosso próprio caminho. O paradigma parece ser o do aventureiro que se arrisca na selva amazónica, no terreno ainda não desbravado.

Nada tenho contra a real inovação, o pensamento que é aventura (o verdadeiro pensamento é sempre aventura), a contestação da tradição e o horror à imitação. O problema é o de saber se estes feitos estão ao acesso de todas as bolsas. E o problema é o de saber até que ponto este lugar comum é consistente com quem o defende.

Quando vemos multidões a defender estes lugares comuns (ao ponto de até o marketing se alimentar deles) vemos que quem o segue, fá-lo por um fenómeno de imitação, e em suma segue uma tradição mais ou menos recente. Primeira brecha neste paraíso da inovação.

Em segundo lugar, quando vemos os criadores da modernidade seguiam mestres de tradições ainda mais antigas (Baudelaire e seu Maistre, Nietzsche e seus pré-socráticos). Toda a aparente negação da tradição gera apegos a tradições, toda a negação da imitação gera novas imitações e nelas se sustenta. Eis a segunda brecha.

Em terceiro lugar, no elevado pensamento contemporâneo não é este tipo de negação que impera sem partilha. Na física encontramos um conservador impenitente como Einstein ou mesmo Dirac. Na química um Prigogine. Na economia um Hayek, na antropologia um René Girad. É estranho aliás que a relação entre estas várias personalidades nunca seja feita, porque apresentam estruturas de pensamento em muitos aspectos semelhantes.

Na matemática os termos em que se coloca a hipótese do contínuo só se compreende porque se quer integrar a mesma numa tradição. Afinal é fácil de demonstrar, basta afirmar que os índices de Aleph são apenas 0 e inteiros positivos como axioma, o que não deixaria satisfeito nenhum matemático que se preze, exactamente por não incorporar a tradição matemática. Na física Einstein quis preservar as equações de Maxwell e procurou novos princípios de conservação.

Um dos campos que parece excepção aparente é o da arte, em que se teria rompido com a tradição de vez. Mera ilusão. Picasso confronta-se com Rafael e procura noutras tradições (a ibérica mais que a africana como Penrose mostrou) a sua inspiração. A música de vanguarda acaba por dialogar com os mestres flamengos do século XVI. Na literatura a poesia concreta descobre a sua genealogia nos alexandrinos e na tradição medieval. Rilke encontra na tradição medieval e bizantino-russa muita da sua inspiração para o “Livro de Horas”.

De uma forma ou de outra o pensamento contemporâneo – o profundo, não o jornalístico – nunca abandonou nem a tradição nem a imitação como modelos explicativos e estruturas fundamentais da existência. E é natural que ambas estejam ligadas. É o que a realidade empírica nos mostra, é o que qualquer análise da realidade nos demonstra.

Qualquer criatura humana cai numa Terra que já existe, numa cultura que já existe. O mundo antes dela já existia. Teríamos assim duas possibilidades, ou o mundo que a rodeia ser-lhe-ia incompreensível, ou irrelevante, ou poderia dele absorver informação. Absorvendo teríamos duas possibilidades: ou vinha com estruturas totalmente novas, caídas no nada, de compreensão e interacção com o mundo ou tê-las-ia herdado. A genética e a experiência histórica mostram que é a segunda hipótese a verdadeira.

Por mais vasto que seja o campo da liberdade humana, há muita coisa que não escolhemos. Não escolhemos nascer ou não, não escolhemos ser mortais, não escolhermos ser lémures ou humanos, ser chineses ou portugueses, homens ou mulheres, bonitos ou feios, inteligentes ou estúpidos, nascer num meio favorecido ou não. A lista poderia ser desenvolvida até ao infinito. A tradição é simultaneamente o espaço fora da liberdade humana e onde ela se pode exercer. É a estrutura do ambiente humano.

Alguém que não reconheça o papel da tradição que tente começar de um dia para o outro a falar Urdu, se conseguir. Mas faça melhor, porque o Urdu pertence a uma tradição linguística apesar de tudo. Que fale numa língua só sua, com regras morfológicas e sintácticas totalmente novas. Que a função da palavra na frase não seja dada nem pela declinação nem pela preposição, ou pela posição, por exemplo. Os que dizem que não seguem tradições, que não falem nenhum das línguas existentes, pois. Que se calem nessas e falem só em línguas que mais ninguém conhece. Ao menos um efeito obteríamos: o nosso descanso.

2 comentários:

joão wemans disse...

Li com gosto estas linhas sobre a nossa condição de seres "pré-concebidos" (amados desde o seio materno, já com nome e tudo...) - da qual nos tentamos libertar, sem êxito.
Sendo gratos, podemos ser livres, e verdadeiramente criativos.

João Wemans

Alexandre Brandão da Veiga disse...

Se me permite, sintetizou melhor que eu : Sendo gratos, podemos ser livres, e verdadeiramente criativos.