terça-feira, 5 de janeiro de 2010

O regresso de Hipácia I







Eis que surge um filme sobre Hipácia. Finalmente. Não o vi e pretendo vê-lo. Por isso não vou comentar o filme, mas o que se diz a volta dele. Aparecem livros sobre a personagem em Inglaterra. Tanto melhor. É significativo que uma antiga deputada uns meses antes tenha dito que se tinha posto a estudar Hipácia. A mesma que diz que o mundo são partículas, o que é sempre bom saber, porque deve julgar que as ditas são uma espécie de berlindes em ponto pequeno.

Cada um ache o que pode e sabe, mas o que assusta neste renascimento da figura da Hipácia para o público não é tanto o renascimento, que em si é saudável, mas a forma distorcida com que é vista. Quando uma figura reaparece, se for sinal de alargamento de conhecimento, tanto melhor. Se é apenas de propaganda que se trata já a coisa é repugnante. A época contemporânea não fez nascer a ciência (já vinha de antes), fez surgir a propaganda parasitária da ciência. Algo bem diverso.

Como é usada Hipácia para propaganda? Tem vários ingredientes que a tornam apetecível: é uma mulher, intelectual e foi morta por cristãos. Permite assim a unificação de uma propaganda em que se mostra de uma só assentada como o cristianismo oprimiu as mulheres e a cultura. Vários picantes num só.

O problema destas conclusões é que resultam de uma absoluta incultura e de quem é incapaz de perceber a complexidade e por isso lhe tem ódio.

Entendamo-nos. Poucas pessoas podem invocar a sua admiração em relação ao paganismo tardio como eu. O paganismo tardio é essencial para explicar a sociedade que se construiu depois, de matriz cristã, mas igualmente profundamente influenciada pelo paganismo na forma em que este se encontrava. Exactamente: a forma tardia. O cristianismo não surgiu no tempo de Homero, e nem sequer de Péricles. É por isso francamente menos frutuoso fazer a sua comparação com estas fases do paganismo, que com o estado em que o cristianismo o encontrou.

Quando nasce o cristianismo, a religião oficial do Estado romano era uma, mas as elites estavam imbuídas de estoicismo e a população de mitos orientais, egípcios, restos da religião popular romana em evolução. Cibele, Mitra (embora menos do que pensaria Renan, como Turcan demonstrou), Serápis inundam Roma. As inscrições mostram-nos, as obras dão disso testemunho. A partir do século III os múltiplos neoplatonismos e neopitagorismos ressurgem em força e misturam-se com o ambiente anterior, prevalecendo sobre o estoicismo.

É um pequeno excurso, mas mostra que não é por confronto a Sófocles vivo ou Platão que se integram os cristãos. É por via de um Homero cada vez mais alegorizado, de um Platão cada vez mais divinizado que os cristãos se integram no mundo dito antigo.

O paganismo tardio está repleto de personagens de uma imensa dignidade. Porfírio, juntamente com Nietzsche, foi o mais profundo crítico do cristianismo, e não por acaso grande admirador de Jesus. São sempre os mais perigosos, para o bem e para o mal, os que admiram quem contestam. Não há memória que Cipião tenha dito que Aníbal era medíocre.

Proclo e Jâmblico, mas também Libânio, ou num registo diverso, Símaco, são personagens comoventes, tanto pelas suas convicções, como pelas suas limitações. Amavam um mundo que sabiam estar a morrer e de que não perceberam ter afinal nessa fase uma possibilidade de renascimento.

Hipácia faz parte dessa galeria de figuras dignas (menos aflitas que Celso, por exemplo), que mostraram a grandeza, não do paganismo clássico, mas do paganismo tardio. É por si mesma uma figura fascinante, pelo que tem de grande mas afinal de típico da época.

Como me interessa trazer para a nossa época a personagem, mais que a analisar, vejamos como a propaganda que a usa se quadra muito mal na personagem. Mulher, cientista e vítima de cristãos.

Mulher, sem dúvida. Mas quem a quiser ver como paradigma da mulher moderna (seja lá o que esse lugar comum queira dizer) é capaz de ter algumas surpresas. A castidade e a virgindade foram valores de que não abdicou. Não imagino os ditos modernos de profissão a poderem exaltar por isso. Não era casta por uma suposta ideologia judaico-cristã (termo tonto de o há), mas por força precisamente do paganismo que professava.

Perante um homem que a assediava (parece que era muito bela) entrega-lhe o equivalente ao seu penso higiénico e diz-lhe: é com isto que pretendes fazer amor? Ao que, como é evidente, e em boa moral pagã, o jovem se arrepende e decide ser casto com ela. Mais um exemplo que a modernidade pretende seguir?

1 comentários:

joão wemans disse...

Bom enquadramento da figura de Hipácia, distanciando-a da forma redutora e utilitarista com que é retratada no filme Àgora a época em que viveu.
Vi o filme. È um bocado primário, na forma como
descreve os cristãos, e, sobretudo o Bispo S. Cirilo de Alexandria, que, segundo dizem não era especialmente virtuoso, mas era um homen de cultura (e de poder, é certo), e não o fanático que se vê em acção no filme. A figura de Hipátia parece-me bem vista. É um filme violento e simplista; não me pareceu dos mais virulentos contra o cristianismo. Esteticamente é bom.