Caos Calmo
Nem sempre a literatura procura uma metáfora. Pode ficar-se pela revelação de uma história como ela terá acontecido. Outras vezes, a história apenas parece que podia ter acontecido como é contada, porque o autor optou por conduzi-la pelos caminhos que lhe convieram para de alguma forma chegar a um outro lugar.
Caos Calmo (romance de Sandro Veronesi, 2006) pode ser a história de Pietro e da sua filha Cláudia nos dias seguintes à morte da mãe, Lara. Pietro perante a morte de Lara encara o futuro centrado em Cláudia e na expectativa da sua reacção à morte da mãe. Decide surpreendê-la com a decisão de ficar todos os dias em frente à escola desde que a leva de manhã até que ela sai à tarde. Diz-lhe com o seu acto que ela é agora o centro da sua vida e presume que a sua presença constante poderá suprir a perda da mãe. Vamos seguindo sempre o que Pietro presume ser melhor, o seu melhor.
Pietro faz um corte radical com a sua rotina de gestor de topo num período em que a sua empresa e os seus colegas de administração mais precisariam dele para enfrentar uma difícil decisão de fusão internacional. Passa habitar de manhã e de tarde no jardim, em frente à escola. Na nova morada vai estabelecendo novas rotinas com os outros habitantes e transeuntes daquele jardim. Mais, transforma aquele lugar no ponto de encontro com todos os que precisam dos seus conselhos, os colegas, o irmão, a cunhada, etc.
Aparentemente difícil (como filmar dias inteiros num jardim), o filme de Antonello Luigi Grimaldi, vai sendo pautado por aspectos quotidianos, por personagens nas suas rotinas com quem Pietro acaba por se relacionar através de olhares e gestos ou com quem acaba por conviver como o dono do restaurante ou o vizinho que o convida para uma pasta, que introduzem elementos cómicos e dramáticos que vão temperando o conceito de caos calmo subjacente.
Se procurarmos uma metáfora teríamos o confronto entre o mundo — Calmo — que se repete e prossegue indiferente aos dramas e tragédias individuais e a vida pessoal de Pietro — Caos — que guarda dentro dos limites da privacidade individual ou familiar, as suas tempestades, as suas hipérboles, sonhos, desejos e frustrações, desvios, erros e sentimentos, decisões, indecisões enfim, os seus caminhos. Pietro trocou as suas rotinas, deixou a empresa pelo jardim. O desconsolo e o medo do futuro encontrou refúgio num pacato jardim em frente à escola da filha. Terá ele lá ficado para proteger a filha, ou para se proteger a si? Ou para proteger os dois? Ou para se protegerem mutuamente?
O Caos de Pietro é anestesiado pela mundo Calmo, aquele pequeno mundo em que se refugiou. Tudo continuou sem parar, a fusão aconteceu, as aulas sucederam-se, o restaurante continuou a servir almoços, as mães e os pais continuaram a levar e a ir buscar os filhos à escola, a polícia a orientar o trânsito a essas horas, a rapariga a passear o cão, a mãe e o filho (com sindroma de Down) a olhar para o carro de Pietro à espera do apito e das luzes a piscar, tudo segue o seu curso; é a força do mundo, independente de cada um, mas feita da rotina de cada um. O mundo corre e repete-se, as nossas vidas é que escondem tumultos de paixão e de dúvidas.
O filme começa com Pietro e o irmão a salvarem duas mulheres. O marido da que Pietro salvou ainda lhe disse para ele não ir, que era perigoso. Ao regressar a casa vê a mulher morta no chão e a filha a gritar porque é que ele não tinha atendido o telefone. Há um complexo processo de substituição de identidades, enquanto salvava uma mulher desconhecida mal amada, morria a sua mulher, mal amada também. Mais tarde sonha com a mulher que salvou, com a que está viva, com a que podia ainda sonhar.
Na escola a filha, Cláudia aprende o sentido de reversibilidade e irreversibilidade, de novo a comparação com a vida e a morte, o que se pode inverter e mudar e o que não tem remédio.
Finalmente, o drama de Pietro e projectado na filha tem solução. Cansada de ser motivo de riso dos colegas, Cláudia, pede a Pietro que não fique mais no jardim. A emancipação emocional da filha, mais uma vez por força do mundo, resolve o hiato em que a vida de Pietro não poderia permanecer indefinidamente.
Todo o filme é passado na primeira pessoa, são raras as cenas sem Pietro (Nanni Moretti). Como nos filmes de Woddy Allen, tudo se passa em torno de um eu, introspectivo, indeciso, inseguro, carente. Mas, Pietro (Nanni Moretti), é visto pelos amigos, pelos familiares e por todos aqueles com quem se cruza, como um ser superior capaz de qualquer empresa (presidente após a fusão), corajoso (salva a vida de uma mulher com quem acaba por ter sonhos eróticos, pára para pensar arriscando perder uma carreira profissional) e leal (ao irmão e aos colegas que aconselha e com quem mantém os laços apesar das intrigas).
Não podemos falar, em rigor, de um filme de Nanni Moretti, mas pergunto-me: poderemos deixar de falar de um filme de Nanni Moretti? O argumento de que é co-autor torna-o de algum modo autor, porque Nanni Moretti é isto mesmo: um autor a falar de si e de como pensa mudar o mundo pela mudança das consciências, feita através do seu modo de estar, de proceder, de protestar e de se interrogar.
Não estamos perante uma história em que a necessidade das personagens ecluda da complexidade de uma trama como no romance, na novela ou no conto. Estamos no mundo de Nanni Moretti, no seu humor, no seu modo de cativar, no seu modo de pregar.
3 comentários:
Gostei muito desta crónica, que me parece ter apanhado de forma sintética e profunda o essencial de uma história; uma história bem contada - e bem entendida.
João Wemans
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Preciso e enxuto comentário para uma dos mais belos filmes de 2008!
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