terça-feira, 9 de setembro de 2008

Aventureiro e Revolucionário

Com a devida vénia, esta veio do sítio Pnet Homem


Mao Tsé-Tung, esse irreal modelo de Andy Warhol, morreu há 32 anos em Pequim. Na altura, não passava pela cabeça do mais esparvoado dos seus sequazes que Pequim seria um dia palco de Jogos Olímpicos, com abertura coreografada por um cineasta chinês, meio dissidente, meio émulo do Busby Berkeley que fez a glória dos musicais americanos dos anos 40.
Há 32 anos eu estava em Angola. E pensava em tudo menos em eleições justas e livres e muito menos nas eleições que, agora, o MPLA ganhou com conforto (porventura menos justo) e com esmagadora maioria (porventura pouco livre). Se ligo Mao Tsé-Tung e Angola é porque há 32 anos, protegido pelo pequeno e tão citável Livro Vermelho do terrível mandarim, eu sentia, no generoso calor de África, que devia aos meus 20 anos a obrigação de ser aventureiro e revolucionário para ter a legitimidade de chegar, décadas mais tarde, a chefe de bombeiros.
As minhas aventuras foram irrisórias e estão condenadas ao esquecimento. A coisa resultou em nada ou coisa nenhuma. A bem dizer nem sequer tiveram a dignidade trágica do mau resultado que pais e outros afectos temiam.
Não foi o que aconteceu a um dos meus amigos. Ele e eu, ambos de Luanda, tínhamos caído de pára-quedas no Lobito e, desportivamente, demos em chatear a dominante Unita (Savimbi quando lá vinha ficava no prédio em frente e o Jorge Valentim era um cansativo prodígio de energia). Entre os muitos militantes do Galo Negro havia um idealista e jovem branco que era tu cá, tu lá comigo, mas embirrava com o frémito triunfal estampado no sorriso do meu amigo, julgo que até mais do que com o distinguo político que nos colocava em campos irreconciliáveis.
Chegados os dias de fogo e balas, a Unita começou a tomar conta da cidade. Num velho Citroen boca de sapo, o meu amigo e dois compagnons de route tentaram, já com algum atraso, sair do cerco inimigo. Apanharam uma barreira de imberbes guerrilheiros, putos do mato que, tímidos a descobrir a cidade dos flamingos, logo descobriram no chão do carro um carregador de pistola. Encostaram-nos à parede do Liceu Vasco Lopes Alves e preparavam-se para os fuzilar.
Guerra é guerra e era essa a guerra que todos faziam. Nem o meu amigo, dada a evidente imprudência do achado, lhes poderia levar a mal. Olho por olho.
O meu amigo e os outros dois ainda protestavam desenganada inocência quando se desenhou na esquina mais próxima o perfil trágico e vingador do nosso embirrante e branco adversário. O que os soldadinhos desconfiavam, ele sabia. E ele, do alto dos seus 17 anos militarizados, mandava. Pairava agora no ar uma exaltação de sangue e o meu amigo despediu-se silenciosamente da vida.
Mas num segundo, num só segundo estremecido e assombroso, tudo mudou. O sincero e combativo militante da Unita, que pela Unita continuaria a bater-se depois, declarou inocentes e apolíticos os três compungidos condenados. “Estes vão para o aeroporto apanhar o avião e sair de Angola”, disse ele aos guerrilheiros da Unita. E o carro, o cansado boca de sapo, lá adiante, em vez de seguir à direita para o aeroporto, virou traiçoeiramente à esquerda em direcção à Catumbela e a Benguela onde estava o MPLA.
Já encontrei este anjo salvador duas vezes. Ainda hoje não sabe explicar o que o levou a arriscar a própria vida para salvar a pele dos que o abominavam. Um luminoso respeito pela vida humana? Uma corrosiva solidariedade de raça? Ele não nega, como também não jura por nenhum destes grandes princípios, mas garantiu-me que a prosaica simpatia com que nos tratávamos foi uma das suas modestas razões. Receio bem nunca chegar a ter a coragem desta simplicidade.

5 comentários:

Gonçalo Pistacchini Moita disse...

Ó Manuel, mas que belo post...

andrea disse...

Eu sempre disse que o meu amigo Manuel escreve com alguma piada, muita piada mesmo.
E para quando a compilação dos escritos em papel que se toque?
Abração.
RA.

Sofia Rocha disse...

Ilusão, irrisão, juventude e um " boca de sapo".
Tenho a vida marcada por uma muito longa viagem num boca de sapo. Doze horas de um lugarejo no oeste até Portimão.
Eu tinha oito anos quando o meu pai decidiu comprar um boca de sapo. Malas no carro, íamos os dois passar uns dias ao Algarve. Estrada fora, eis que o radiador se rompe depois de Vila Franca. Naquele domingo abrasador, a estrada deserta, não havia auto-estradas, nem telemóveis, nem estações de serviço, nem reboques, nem coisa nenhuma. Tínhamos um garrafão de água e era tudo. Conduzíamos por períodos de vinte minutos e parávamos, água, condução, paragem, água, procurar encher o garrafão e recomeçar.
O meu pai, dado a contar histórias de forma lenta, cheias de pausas e silêncios, e sempre terrivelmente irónicas, lá nos fez chegar ao destino.
Não sei se foi aquela viagem, ou todas as outras que fizemos, que me fez perceber que as histórias e a ironia são uma forma de sobrevivência.
Obrigado pelas viagens pai. E pelo resto.

Manuel S. Fonseca disse...

Ao Gonçalo, Ricardo A e Sofia, que sobreviveram a esta história, um abraço

Armando Rocheteau disse...

Manel, continuas aventureiro e revolucionário. Sem aspas.