sábado, 16 de agosto de 2008

Gregos e Troianos (II)



Continuava ainda a pensar no quanto andamos distraídos da liquidez dos nossos caminhos (nós, que construímos sobre naves as igrejas e os centros comerciais; nós que abarcamos cientificamente a realidade; nós que pusemos no céu os astronautas; nós, que navegamos na internet; etc.), quando, relendo, ao acaso, a «Odisseia» (que a «Ilíada» não a tinha à mão), os meus olhos repararam no Canto IX, que começa assim:

«Quando a nave deixou o curso do rio Oceano e atingiu as ondas do mar de muitos caminhos, depois da ilha de Eeia, onde reside com seus coros a Aurora, que nasce de manhã cedo, onde se ergue Hélio, encalhámos logo à chegada a nau sobre as areias e saltámos para terra por entre a arrebentação do mar. Em seguida adormecemos esperando pela brilhante Aurora.»*

O texto continuava, entre o mar e a terra, a noite e o dia, a vida e a morte, falando-nos do caminho que somos chamados a fazer. Ia eu meditando estas coisas quando surgiu a Sofia Rocha, instando-nos, em nome da igualdade de género, a que escrevêssemos sobre gregas e troianas. Pediu mesmo ao Manuel, de belas palavras, que falasse do amor de Aquiles e Briseida, e de como era diferente do amor que ele tinha com Pátroclo, desafiando-nos a todos a falar da bela Helena, motivo da guerra de Tróia. Desprevenido, como sempre estão os homens ante os pedidos das mulheres, voltei ao texto, que dizia:

«Ela disse, e o nosso coração viril obedeceu-lhe. Assim, ao longo do dia, até ao pôr-do-Sol, ali ficávamos, repartindo entre nós carnes em profusão e doce vinho. Posto o Sol e sobrevindas as trevas, os meus homens foram dormir junto das amarras; mas Circe, tomando-me pela mão, obrigou-me a sentar-me longe deles, deitou-se a meu lado e interrogou-me sobre todos os pontos. Eu contei-lhe tudo, como devia. E a augusta Circe dirigiu-me então estas palavras: “Eis portanto esta prova cumprida até ao fim. Tu, escuta tudo o que te vou dizer; aliás, um deus em pessoa te fará recordá-lo. Chegarás primeiro à terra das Sereias, cuja voz seduz qualquer homem que caminhe para elas. Se algum se aproxima sem estar prevenido e as ouve, jamais a sua mulher e os seus filhos pequerruchos se reúnem em torno dele e festejam o seu regresso; o canto harmonioso das sereias cativa-o. Elas habitam num prado, e a toda a volta a margem está cheia das ossadas de corpos que se decompõem; sobre os ossos disseca-se a pele. Passa sem te deteres; amassa cera doce com mel e tapa as orelhas dos teus companheiros, para que nenhum deles as possa escutar. Quanto a ti, ouve, se quiseres; mas que sobre a tua rápida nau te atem as mãos e os pés, erguido junto ao mastro, e a ele te prendam por meio de cordas, a fim de que gozes o prazer de ouvires a voz das sereias. E, se tu suplicares e instares a tua gente para que te soltem, que eles dêem nós ainda mais numerosos. Depois, quando eles tiverem ultrapassado as sereias, já não te direi com precisão qual das duas rotas deverás seguir; cabe-te a ti deliberar em teu coração.»*

Dito isto, decidi seguir o meu caminho, que pelos deuses me parece estar já traçado, ainda que não saiba onde vai dar. Mas à Sofia, de sábios conselhos, relanço o próprio desafio, para que se junte a nós, «infelizes, que entramos vivos na morada de Hades e que morremos duas vezes, quando todos os outros homens não se finam senão uma»*, e aqui nos conte a sua visão da bela Helena. Ou de Andrómaca, ou de Penélope; ou de Calipso, a ninfa de belos caracóis, a augusta deusa que, na sua ilha, quis prender Ulisses, ao qual amava, mas cuja vida doce, que ali tinha, «corria em pranto pelo perdido regresso.»**


Quadro de: John William Waterhouse,Ulysses and the Sirens, 1891
* Odisseia, Canto XII (Ed. Europa-América, Mem Martins, s/d, págs. 133-134)
** Odisseia, Canto V (Ed. Europa-América, Mem Martins, s/d, pág. 63)