domingo, 27 de julho de 2008

Le Corbusier e as Utopias no CCB


Estiveram em simultâneo no CCB duas exposições que se tangeram. Uma é sobre a obra multifacetada daquele que é considerado o principal arquitecto do século XX, Le Corbusier (1987-1965) e a outra é uma exposição de fotografia intitulada — Utopias — e onde se dá por definido que utopia são blocos de apartamentos todos iguais ou em subúrbios ou em contraste com outros contextos urbanos.

Apesar do abuso evidente de identificar as Utopias com blocos de apartamentos em subúrbios, a ligação entre as duas exposições tem uma intenção polemizante pois há obras de Le Corbusier nesse rol de utopias que aparecem como clamorosos falhanços de uma vontade normalizadora versus uma realidade individual, e a comparação deixa o visitante no mínimo de sobreaviso.
A ligação é por muitas razões curiosa. Por uma lado, a exposição de Le Corbusier é fascinante pelo seu lado de artista plástico formado por mestres artesãos, que teve a sua iniciação nas artes plásticas e no design e que prolongou essa sua liberdade conceptual para os domínios da arquitectura sendo o primeiro arquitecto a, em larga escala, revolucionar os princípios até então consensuais da arquitectura criando novas bases para o seu desenvolvimento — planta livre, os pilotis, fachadas de composição livre, janelas corridas e jardins nas coberturas—, por outro, o seu lado normativo e ideológico que se propunha destruir parcialmente o centro de Paris para erguer gigantescas torres cruciformes implantadas num terreno previamente aplanado e ajardinado que deveria conviver (não fosse a falta de visão dos académicos que disseram não!) com outras permanências da cidade como a torre Eiffel ou a Notre Dame. Desta obra devastadora não há senão maquetas, desenhos e desabafos, mas do Bloco de Marselha há fotografias dois pisos abaixo onde se expunham as fotografias das Utopias. Numa exposição mostra-se Le Corbusier a encaixar, como se uma gaveta se tratasse, um módulo de apartamento em duplex, na outra mostram-se edifícios onde as pessoas estavam engavetadas a serem demolidos.

Le Corbusier e inaugurou e pertenceu a um tempo em que as mudanças ideológicas e a sua esperança, posta no adjectivo moderno ou modernista, alteraram a ordem dos factores das relações sociais. Passou a dizer-se com o modernismo e a sua auto-confiança, o que o homem deve ser, o que o homem deve ter, o que o homem deve fazer, o que deve aceitar, em que é que deve confiar, o que o homem deve, o que o homem deve, o que o homem deve. Passou também a haver especialistas para construir um homem à imagem e semelhança de um novo ismo, o racionalismo materialista. Por isso, os homens deixaram de decidir sobre como queriam as suas casas para passarem a viver nas casas que os arautos do Progresso dissessem que eram as casas para eles viverem.

Também nas artes plásticas as novas tendências eram a procura de uma fundamentação científico-ideológica que tornasse a arte não numa revelação de alguma realidade menos concreta, mas pudesse adquirir a limpidez de um corolário científico. Como a ciência evolui mas nunca é definitiva apesar de assim se considerar e, por isso, estabelecer leis que não são metafísicas mas demonstráveis, mas em que o que hoje é verdade amanhã é mentira (ou uma fase da necessária evolução até ao desencobrimento final das opacidades deste mundo), todo o valor da ciência passou a estar datado. Assim, aconteceu com a arte que lhe seguiu modernamente os passos. Entretanto, isto aplicado à arquitectura, esta inconstância feita de aparentes constantes, foi fomentando algumas atrocidades na paisagem e na vida das subjugadas populações que a exposição Utopias bem demonstram.
O homem individual deixou de se interrogar e procurar a verdade ou o que quer que seja. O homem moderno, desassombrado e confiante, faz de professor e explica que há um tempo novo que todos têm de abraçar e aceitar porque tudo está descoberto ou é como se já estivesse. O caminho torna-se, assim, o caminho único.
As liberdades artísticas de uns resultam na infernização da vida de outros. Mas como o mundo, entretanto, se tornou dependente de especialistas para tudo, já quase ninguém consegue decidir sobre os seus destinos, e segundo os seus gostos, porque alguém encartado pelo Estado, ou reconhecido por alguma inteligência, está aí empregado, fazendo até depender a sobrevivência da sua especialidade, de decidir sobre e pelos outros que não o solicitaram.
Mas o arquitecto ditador, é hoje em dia apreciado e até invejado porque faz o que quer. Outros ditadores são pelos mesmos rejeitados mas aí é porque não são eles que ditam.

Esta sequência de exposições deixa esta nota de contraditório: de um lado a entronização de um génio; do outro, o seu lado sombrio. Haverá quem não o reconheça. Mas espero que ainda me seja permitido ter esta opinião.

4 comentários:

Luís Bonifácio disse...

Mas a culpa será de Le Corbusier?

Não será antes dos arquitectos medíocres que o interpretaram mal, produzindo o nojo suburbanos das grandes cidades?

João Luís Ferreira disse...

Caro Luís,
Não se poderá falar de culpa. porque o post não anda à procura de culpados. O que me interessa é perceber os processos em que o pensamento se vai revelando na história para podermos decidir que caminhos temos de seguir e que ilações temos de tirar. Os arquitectos medíocres têm as suas referências e terão as suas dificuldades também, mas há um status quo que permite que se façam muitas coisas que noutro enquadramento talvez não fossem possíveis.

Madalena Lello disse...

“ mas do Bloco de Marselha há fotografias dois pisos abaixo onde se expunham as fotografias das Utopias”. Quem não viu as duas exposições, não dá conta do erro – não são fotografias da Unidade de Habitação de Marselha mas da Unidade de Habitação de Firminy. Erros, todos nós fazemos, mas espanta o João Luis, que é arquitecto, confundir o bloco de Marselha com o de Firminy. O trabalho fotográfico de Arni Haraldsson, exposto em Utopias, centra-se em todas as obras que Le Corbusier fez em Firminy. Haraldsson não só fotografou a Unidade de Habitação, mas o horror em que se transformou Firminy, com toda aquela construção, e é isso que é relevante. Em relação à UH de Firminy, praticamente desabitada, porque os habitantes fugiram a sete pés, ninguém sabe hoje o que fazer com aquele monstro…Pasmo com o erro?, talvez não…pois não são as Unidades de Habitação de Le Corbusier, independentemente do local, Marselha , Firminy, Berlim…afinal todas iguais?

João Luís Ferreira disse...

Faltaram-me as aspas no post original para que a ironia não fosse mal interpretada. Sempre há leitores atentos...