Do outro lado do espelho
Há alguns dias, ao lembrar a sua passagem pelo governo e a experiência aí vivida, Luís Campos e Cunha resumia: é como a Alice no País das Maravilhas - quando passa o espelho, a realidade altera-se! (vd. Jornal de Negócios, 4 de Julho de 2008, Weekend, pág. X).
Nem de propósito, o debate do Estado da Nação veio a ocorrer no dia seguinte à divulgação dos novos dados do Eurostat (ver aqui).
Nem de propósito, o debate do Estado da Nação veio a ocorrer no dia seguinte à divulgação dos novos dados do Eurostat (ver aqui).
E o Primeiro-Ministro lá esteve, igual a ele próprio, do outro lado do espelho. Visivelmente contente consigo e com a obra, fez uns truques.
No fundo, Sócrates transformou a desgraça em trunfo e, sem muito mais elaboração, viu na alta dos preços do petróleo uma oportunidade imperdível para um inesperado aumento de receitas. Depois, distribuiu ‘benesses’ e ainda anunciou um saldo positivo. Simples, quase mágico e de efeito garantido.
É claro que, com este tipo de iniciativas, Sócrates revela bem o que pensa da política, do exercício do poder e, acima de tudo, a conta em que tem os Portugueses. Mas, em abono da verdade, diga-se que sempre terá a seu favor o ar do tempo. Temos andado assim, sem mais exigência, sem mais ambição.
É claro que, com este tipo de iniciativas, Sócrates revela bem o que pensa da política, do exercício do poder e, acima de tudo, a conta em que tem os Portugueses. Mas, em abono da verdade, diga-se que sempre terá a seu favor o ar do tempo. Temos andado assim, sem mais exigência, sem mais ambição.
Sucede que, do alto do seu (apesar de tudo) indisfarçável nervosismo, Sócrates ignorou o lado de cá do espelho. O lado da vida real, do dia-a-dia das pessoas concretas, das suas dificuldades e das suas inquietações.
Ora, nesse plano mais prosaico e baço, bem longe da mitomania do Primeiro-Ministro, os Portugueses viram-se confrontados com a dureza dos números. Perceberam que, numa Europa que resiste e cresce, Portugal perde mais e mais terreno. Quer se considere a zona Euro, quer a Europa dos 27, Portugal mostra-se incapaz de acompanhar o desempenho das economias da generalidade dos Estados-membros e, sobretudo, incapaz de qualquer emulação com países como a Eslovénia, a Eslováquia, a Polónia ou a República Checa, para só referir os mais óbvios.
Num contexto de crise global, e sem encontrar aí as desculpas de Sócrates, a UE aguentou e o seu PIB cresceu 0,7% no primeiro trimestre de 2008. Por comparação com o primeiro trimestre de 2007, tal significa um aumento de 2,1% na zona Euro e de 2,3% na Europa a 27.
Apesar da retracção dos mercados financeiros, da subida dos preços do petróleo e dos produtos alimentares, a Eslovénia cresceu 2,2%, a Eslováquia 2,1% e Malta 1,7%. Face à adversidade, o PIB alemão – note-se bem – cresceu 1,5%. Enquanto isso, só quatro Estados-membros revelaram um crescimento negativo: Estónia, Dinamarca, Irlanda e Portugal.
A imprensa internacional deu nota do facto. Os jornais europeus divulgaram os números e identificaram ganhadores e perdedores. Portugal à beira da recessão titularam… Mas, por cá, o Primeiro-Ministro, alheio a tudo, preferiu discorrer sobre as maravilhas do seu país virtual.
O mesmo Primeiro-Ministro que ganhou eleições prometendo atingir um nível de crescimento do PIB susceptível de assegurar a convergência… O mesmo Primeiro-Ministro que ganhou eleições prometendo desenvolver um plano plurianual de redução da despesa corrente em percentagem do PIB capaz de constituir a base de um contrato a celebrar com os diversos serviços da Administração Pública...
Três anos depois, não convergiu e não fez (nem, evidentemente, contratualizou) qualquer plano plurianual de redução de despesa. Antes foi para o Parlamento, anunciar o bodo permitido pelo encaixe das receitas adicionais geradas pela escalada do preço do petróleo.
Três anos depois, não convergiu e não fez (nem, evidentemente, contratualizou) qualquer plano plurianual de redução de despesa. Antes foi para o Parlamento, anunciar o bodo permitido pelo encaixe das receitas adicionais geradas pela escalada do preço do petróleo.
Na verdade, tudo é diferente do outro lado do espelho.
4 comentários:
Alice! A childish story take,
And, with a gentle hand,
Lay it where Chilhood´s dreams are twined
In memory´s mystic band.
Like pilgrim´s wither´d wreath of flowers
Pluck´d in a far-off land.
Esqueci-me das aspas, de tudo, é óbvio que é citação do autor de Alice no país das maravilhas!
Sofia
O ser humano é, por definição, um animal racional. A nossa razão, no entanto, é limitada, não vendo as coisas intuitivamente, ou por dentro, mas discursivamente, isto é, reflectindo sobre elas a partir da sua manifestação exterior. Entrar para dentro do espelho, neste sentido, significa perder o contacto com a realidade, que já não reflectimos, mas imaginamos, apenas, a partir de nós mesmos, progressivamente submetidos às nossas sensações mais primárias. Para sair de uma tal prisão, segundo a história, só há uma maneira: a iniciativa de alguém que, caindo inadvertidamente nesse poço, nele não se perca, fechado sobre si mesmo, assim conseguindo encontrar a saída, por via de um coração puro.
Posto isto, o que posso dizer acerca deste teu post sobre o nosso primeiro-ministro é que, sendo ele bem verdade, não nos leva até às últimas consequências. Porque neste momento são já muitos os que estão de acordo em que o nosso PM entrou definitivamente para o lado de lá do espelho, de onde não vê, ou não quer ver, a realidade, sobre a qual repetidamente se engana, ou nos engana. E todos eles estão também de acordo em que ele levou consigo quase todo o partido socialista, não lhe restando – contando já com Ana Gomes e com Manuel Alegre –, nenhuma carta dentro ou fora do baralho que verdadeiramente possa fazer o papel da inocente Alice.
Resta-nos, portanto, alguém fora do partido socialista, que com um coração puro possa devolver-nos à realidade. E é isso o que o teu post não diz: Quem poderá, já daqui a ano e meio, fazer o necessário papel de Alice: Paulo Portas? Jerónimo de Sousa? Francisco Louçã? Manuela Ferreira Leite? Esperemos, para o bem de todos, que a resposta se torne evidente!
Gonçalo, o meu post não diz o que não quis dizer... Porque não quis dizer o óbvio. Porque às enunciativas proclamações de fé, prefiro sempre o empenho sério e comprometido na construção de um caminho. Um caminho para a saída que referes. Um caminho que é preciso desenhar, com consistência, a partir de uma visão coerente e mobilizadora, com um rumo claro, e um inequívoco sentido de futuro.
Lembrado isto, e concordando com a essência do que dizes, sublinho que só divergimos, afinal, num ponto: tu esperas que tal caminho se te torne evidente, enquanto para mim já é evidente o que (e quem) pode convocar-me.
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