A história de Léah

A história passa-se em Bruxelas, quando a Europa era um desunido e inconciliável puzzle de nações. Local da acção: uma pensão sórdida, de camas desfeitas, mau aquecimento, exíguos lavatórios e águas por despejar.
O narrador – quem será? o próprio Miguéis? um humilde e angustiado beirão? um destes tipos viris cuja masculinidade sucumbe ao primeiro sinal de candura feminina? – o narrador, dizia eu, essa voz tão pessoal mas de olhar distraído, é surpreendido (num desconsolo que hesitava entre as três e as quatro da tarde) por um rosto luminoso, boca carnuda e, sobretudo, por um corpo redondo a que a frescura da juventude conferia uma disponibilidade amável e desassombrada, inocentemente ignorando a previsível ameaça da erosão do tempo.
Na vida deste luso sem qualidades, Léah, a criada da pensão, falando o “francês aveludado de Pas de Calais”, é uma explosão que se “abre e rescende como uma flor”, como é (na minha mal informada opinião) a primeira afirmação na literatura portuguesa de uma sexualidade sem culpa, sendo seguramente a primeira celebração de uma “carne comunicativa, terna e compassiva”.
O narrador e Léah amam-se, a partir daí, todas ou quase todas as noites, ou mesmo às quatro da tarde – cabeça de quem reclinada sobre o regaço de quem? boca sincera e solícita dela a apaziguar a lusitana exasperação dele! – até lhes acontecer, magro e funesto, o primeiro beijo triste e amargo.
Quem, como na canção patética de William Blake, terá, primeiro, acolhido no acendrado colo o imundo verme do egoísmo e do medo?
Peço-vos que leiam. “Léah” é um conto de 28 páginas. Escrito num português simples e cristalino. Está nas Obras Completas de José Rodrigues Miguéis, da Editorial Estampa. A 6ª edição, a que conservei, é de 1981.
E, sempre que queriam, apareçam por aqui às 3ªs. É o meu dia de fazer companhia a mais 6 ilustres cavalheiros.

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