quinta-feira, 26 de junho de 2008

Da Visão: Mitos Democráticos

1 – Não vou perder tempo a tentar perceber o que é que os irlandeses «realmente» queriam dizer com o seu «não» ao tratado de Lisboa. Até prova em contrário, «não» quer dizer «não», ponto final parágrafo.
Dito isto, vale a pena fazer uma reflexão sobre o caminho que trouxe a Europa até este beco sem saída. Tenho para mim muito claro que um dos grandes mitos das nossas sociedades democráticas modernas é a ideia de que «mais democracia» e sobretudo «democracia mais directa» são sinónimos de «melhor democracia». Triste mito. Santa ignorância. Não é por acaso que os «founding fathers» americanos (que, goste-se ou não, são os pais fundadores de todas as modernas democracias liberais) rejeitaram explicitamente esta interpretação populista do ideal democrático. Muito melhor do que a maioria dos líderes europeus de hoje, sabiam – para citar uma expressão feliz de Bruce Ackerman e James Fishkin – que os referendos são um «método indigno para uma democracia moderna». Muito melhor do que os modernos arautos do «directismo» de pacotilha, sabiam entender a importância de casar o valor da igualdade política (em que se baseia a democracia) com as virtudes da reflexão, da ponderação, da deliberação, da negociação e da construção de consensos (em que se baseiam os regimes representativos) sem as quais não haverá nunca, como é penosamente óbvio, processo de construção europeia que resista.
Acontece que o «directismo» é um mito conveniente, alimentado pelo discurso politicamente correcto em voga e sobretudo pela tibieza de muitos dos nossos eleitos que, tendo toda a legitimidade democrática para decidir, se demitem de fazê-lo, e se escondem por detrás da farsa e da miragem referendárias. Acontece que é preciso coragem política para assumir que nas democracias representativas modernas o povo escolhe quem deve decidir e não tem necessariamente de participar no «problem solving» concreto. E como coragem política não é propriamente uma característica definidora da maioria dos líderes europeus de hoje, o mais provável é que os vejamos entretidos por mais uns tempos a tentar interpretar o que, «no fundo no fundo», queriam os irlandeses realmente dizer. E como ninguém se vai entender sobre o assunto, o mais certo é voltarem a perguntar-lhes até os pobres coitados acertarem na resposta conveniente.
2 – Outro mito tão persistente quanto pernicioso dos nossos tempos é a ideia que a democracia está suficientemente consolidada nos países ocidentais para que exista um real perigo do seu retrocesso. Em Portugal este mito é sofisticado com a ideia conveniente de que «a Europa não permitiria que o país regressasse aos tempos da outra senhora». Ora não há nada mais perigoso para a Democracia do que a ideia de que não é preciso zelar por ela todos os dias. E se é verdade que é difícil imaginar na Europa do século XXI, uma intentona militar liderada por um general de óculos escuros e bigode farfalhudo, já não será tão descabido discorrer sobre os perigos que o populismo e os excessos de «directismo» democrático podem representar para os regimes demo-liberais modernos. Não havia para aí um filósofo velhinho que falava da sucessão cíclica das formas de governo?

4 comentários:

Inez Dentinho disse...

A Democracia directa parece mais autêntica mas é propícia à demagogia porque resulta do esclarecimento simplista e incompleto das realidades complexas que se sufragam.
A Democracia representativa resulta, mais verdadeira se - e só se - fôr representativa.
A distância entre o eleito e o eleitor; entre o argumento e o resultado final das políticas; entre a teia electiva dos partidos e a sociedade civil, aliada ao autismo e à falta de transparência dos processos de decisão favorecem «o abuso da democracia» - definição primeira de demagogia.
Do meu ponto de vista, o Referendo irlandês não deve ser visto como expressão da democracia directa. O «Não» representa o único protesto possível contra a falta de representatividade que foi tomando a democracia europeia.
Havia que discutir antes de assinar o Tratado com pompa e displicência. Havia que respeitar, em primeiro lugar, os parlamentos nacionais e europeu. A política das favas contadas infecta a confiança na democracia. E devolve-nos às directas, dentro em pouco, de braço no ar.

Anónimo disse...

Aqui está um texto de reflexão equilibrado.
Obrigado.
Faço minhas as palavras de Inez Dentinho.
Aconselho no caso (improvável) de naõ o conhecerem, um livro de Paulo Otero:
"A Democracia Totalitária", Ed. Princípia, 2001.
É uma obra MUITO interessante sobre as nossas democracias e os perigos que enfrentam no séc. XXI - nomeadamente o de insidiosamente transferirem defeitos congénitos próprios de Estados totalitários para as nossas Sociedades - a Sociedade totalitária, futuro presente?
João Wemans

Anónimo disse...

Inês e João,
No essencial acho que estamos de acordo. Reconheço que o Tratado devia ter sido discutido e debatidoj desde logo nos parlamentos nacionais. Mas reitero que não me parece que a via referendária acrescente o que quer que seja à qualidade do debate ou à legitimidade de uma qualquer decisão

Tiago Cunha Quaresma disse...

Concordo com a generalidade do artigo, efectivamente as democracias representativas modernas levam a que, em momento à priori, os nossos lideres tenham toda a legitimidade necessária para decidirem, e mais importante, não se demitirem de decidir, refugiando-se na opinião daqueles que já lhes deram o mandato para tal.
Não posso concordar com todo o artigo.
Se é certo que existem matérias que deveriam ficar ab initio fora de referendo, existem outras que não deverão ser, desde logo, afastadas de tal mecanismo.
O referendo não deve ser visto como um mecanismo nefasto, mas antes como um mecanismo de concertação de opiniões e vontades, como um mecanismo de responsabilização dos cidadãos pelas decisões tomadas.
Concordo plenamente com o que diz, que não deveria existir referendo sobre o Tratado de Lisboa, mas não pelo referendo em si, antes pela matéria que querem levar a referendo.
Há matéria que, pela sua especialidade, não podem ser decididas pelos cidadãos no seu conjunto, e não podem porque essa decisão nunca será devidamente pensada, reflectida e fundamentada.
A generalidade das pessoas não conhece o texto do Tratado de Lisboa, nem tão pouco se irá dar ao trabalho de o conhecer para ter uma opinião formada para votar.
A generalidade das pessoas vê o referendo como uma hipótese de dizer mal do governo, de atribuir um “cartão vermelho” ao mesmo.
Essa não é a génese do referendo.
O referendo é pois utilizado como mais um mecanismo de batalha politica, e não como um mecanismo de responsabilização dos cidadãos por decisões marcantes da nossa vida.
Respondendo à primeira questão levantada, o porquê do não irlandês, parece-me que o não irlandês seria igual ao não português, ou seja, caso o Tratado de Lisboa fosse colocado em referendo a nível nacional, todos os cidadãos iriam votar a actuação do governo e da oposição, iriam querer enviar um recado, e os analistas posteriormente iriam preocupar-se em analisar se o resultado do referendo seria bom para o governo, em vez de se preocuparem com o verdadeiro problema, se o resultado do referendo seria bom para Portugal e para o futuro da Europa.
Concluindo, entendo efectivamente que há matérias que nunca deveriam passar por referendo, não porque são importantes demais para a generalidade dos cidadão opinarem, pois a nossa classe politica não pode ser vista como uma elite, mas antes porque estes cidadão não estão importados em se informarem antes de votarem, estão fora dos assuntos, desinformados.
Entendo que noutras áreas o referendo é essencial, designadamente o referendo local, no âmbito das autarquias locais, mecanismo raramente utilizado, que levaria os munícipes a responsabilizarem-se directamente por matérias, que essas sim, mexem no dia-a-dia de cada um de nós.
Deixem-nos falar, deixem-nos escolher! mas apenas sobre aquilo que sabemos falar...